terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O LIVRO DE MIRDAD, O Clandestino. O Mestre, O Iluminado


O LIVRO DE MIRDAD



Um Farol e um Refúgio
Mikhail Naimy
Índice
A História do Livro
O abade prisioneiro
A escarpa rochosa
O guardião do livro
O LIVRO DE MIRDAD
Mirdad se revela e fala de véus e selos.
Acerca da Palavra Criadora.
O eu é a fonte e o centro de todas as coisas.
A Trindade Sagrada e o Perfeito Equilíbrio.
O homem é um deus enfaixado.
Cadinho e peneiras.
A Palavra de Deus e a do homem.
Acerca de mestres e servo.
Os Companheiros dão sua opinião a respeito de Mirdad
Micayon e Naronda mantém uma palestra noturna com
Mirdad e este os avisa do dilúvio que está para vir,
rogando-lhes que estejam prontos.
Os Sete buscam Mirdad no Ninho da Águia.
Ele os adverte de nada fazerem no escuro caminho para
uma vida sem sofrimento.
Os Companheiros querem saber se Mirdad é o
Clandestino.
Acerca do julgamento e o dia do juízo.
Amor é a lei de Deus.
Mirdad adivinha uma inimizade entre dois Companheiros,
pede a harpa e canta o hino da nova Arca.
Acerca do Silêncio Criador.
O falar é, na melhor das hipóteses, uma mentira honesta.
Da oração.
Colóquio entre dois arcanjos e entre dois arqui-demônios
na ocasião, independente do tempo, em que nasceu o
homem.
Shamadam faz um esforço para expulsar Mirdad da Arca.
O Mestre fala acerca de insultar e ser insultado, e de
encarar o mundo com a Sagrada Compreensão.
Acerca de credores.
Que é o dinheiro?
Rustidion é perdoado de sua dívida para com a Arca.
Shamadam recorre ao suborno na sua luta contra Mirdad.
Mirdad adivinha a morte do pai de Himbal e as
circunstâncias em que se dera. O Mestre fala da morte.
O Tempo é o maior embusteiro.
A roda do Tempo, o seu aro e o seu eixo.
Lógica e Fé.
Negação do eu e afirmação do eu.
Como fazer parar a roda do Tempo. Chorando e rindo.
Para onde iremos depois de morrermos.
Do arrependimento.
A Sagrada Vontade Total.
Porque as coisas ocorrem de certa forma e quando isso se
dá.
Mirdad alivia Zamora do seu segredo e fala do homem e
da mulher, do casamento e do celibato daquele que se
libertou.
Mirdad cura Sim-Sim e fala acerca da velhice.
Não é correto matar para comer?
Dia da Videira e a preparação para ele.
Mirdad desaparece na sua véspera.
Mirdad fala aos peregrinos acerca do Dia da Videira e
liberta a Arca de um peso morto.
A Verdade deve ser pregada a todos, ou somente a uns
poucos escolhidos? Mirdad revela o segredo do seu
desaparecimento na véspera do Dia da Videira e fala da
falsa autoridade.
Príncipe de Bethar aparece com Shamadam no Ninho da
Águia.
O colóquio entre o príncipe e Mirdad acerca de guerra e
paz.
Mirdad é aprisionado por Shamadam.
Shamadam em vão tenta reconquistar os Companheiros.
Mirdad retorna miraculosamente e dá a todos os
Companheiros, exceto a Shamadam, o beijo da Fé.
Mestre revela o sonho de Micayon
A Grande Nostalgia
Acerca do pecado e da retirada dos aventais de folha de
figueira.
Acerca da noite – a cantora incomparável.
Acercas do Ovum materno.
Centelhas no caminho que conduz a Deus.
Dia da Arca e os seus rituais.
A mensagem do príncipe de Bethar a respeito da lâmpada
viva.
Mestre avisa à multidão sobre o dilúvio de fogo e sangue,
ensina o caminho de salvação e lança a sua arca.
A História do Livro
O Abade Prisioneiro
No mais alto cume das Montanhas Alvas, conhecido como
o Pico do Altar, jazem as vastas e sombrias ruínas de
mosteiro, outrora famoso, com o nome de A ARCA. A
tradição o ligava a uma antiguidade, tão venerável quanto
à do Dilúvio.
Várias lendas se teceram a respeito da Arca; porém, a que
mais se espalhava na boca dos montanheses, entre os quais
tive oportunidade de passar um verão, à sombra do Pico
do Altar, é a seguinte:
Muitos anos após o grande Dilúvio, Noé, sua família e
seus afins, arribaram às Montanhas Alvas, onde
encontraram vales férteis, rios caudalosos e um clima
extraordinariamente ameno. E ali resolveram fixar-se.
Tendo Noé percebido que seus dias se aproximavam do
fim, chamou para junto de si seu filho Sem, que era, como
ele, um sonhador e tinha visões, e lhe falou:
Repara, filho meu, quão rica foi a colheita de anos de teu
pai. Agora o último molho está pronto para a segadeira. Tu
e teus irmãos e teus filhos e os filhos de teus filhos
repovoareis a Terra desolada, e a tua semente será como a
areia do mar, segundo a promessa que Deus me fez.
No entanto, assalta-me um receio nestes dias bruxuleantes
que me restam. É o de que os homens, com o tempo, se
esqueçam do Dilúvio e da luxúria e maldade que o
provocaram; de que também se esqueçam da Arca e da Fé
que a susteve em triunfo, durante cento e cinqüenta dias
sobre a fúria dos abismos vingadores e de que nem sem
lembrem da Nova Vida que surgiu dessa Fé da qual eles
são o fruto. Para que eles não esqueçam, eu te peço, filho
meu, que levantes um altar sobre o mais alto pico destas
montanhas, o qual, daí por diante, será chamado o Pico do
Altar. E rogo-te que construas, à volta desse altar, uma
casa que em todos os pormenores corresponda à Arca e
que, sendo embora de menores dimensões, será chamada
“Arca”.


Sobre esse altar eu me proponho a fazer minha última
oferenda. E o fogo que eu ali acender, peço-te que o
conserves constantemente aceso. Quando à casa, dela farás
um santuário, onde viverá uma pequena comunidade de
pessoas escolhidas, cujo número nunca será nem mais,
nem menos que nove. Serão conhecidas como os
Companheiros da Arca. Quando uma delas falecer, Deus
imediatamente proverá outra que a substitua. Estas pessoas
jamais deixarão o santuário, onde viverão uma vida de
claustro pelo resto de seus dias, praticando toda a
austeridade da Arca-Mãe e conservando aceso o fogo da
fé, pedindo ao Altíssimo que as guie, bem como aos seus
companheiros. As suas necessidades materiais serão
providas pela caridade dos que tiverem fé.
Sem, que estivera bebendo, sílaba por sílaba, as palavras
de seu pai, o interrompeu para saber o motivo do número
nove, nem mais nem menos. E o patriarca, castigado pela
idade provecta, explicou:
“Porque foi esse o número dos que viveram na Arca.”
Mas Sem não conseguia contar mais do que oito: seu pai e
sua mãe, ele próprio e sua esposa, seus dois irmãos e as
respectivas esposas. E conseqüentemente, ficou perplexo
diante das palavras de seu pai. Noé, percebendo a
perplexidade de seu filho, explicou ainda:
“Guarda silêncio, que te vou revelar um grande segredo,
meu filho. A nona pessoa era um clandestino, que somente
eu vi e conheci. Era meu constante companheiro e meu
homem do leme. Nada mais me perguntes sobre ele, mas
não deixes de lhe guardar um lugar no teu Santuário. Esta
é a minha vontade, Sem, meu filho. Providencia para que
seja executada.”
E assim foi que Sem fez o que seu pai lhe havia ordenado.
Quando Noé se foi juntar aos seus antepassados, seus
filhos lhe enterraram o corpo debaixo do altar, na Arca,
que por muitos e muitos anos continuou a ser, de fato e em
espírito, o verdadeiro santuário idealizado pelo venerável
conquistador do Dilúvio.
Com o passar dos séculos, porém, a Arca principiou,
pouco a pouco, a receber dos fiéis, donativos muito além
do que realmente necessitava. De tal fato resultou que se
foi tornando, de ano para ano, mais rica em terras, prata,
ouro e pedras preciosas.
Um dia, há algumas gerações, tendo falecido um dos
Nove, apresentou-se um estranho aos portões do mosteiro,
solicitando sua admissão na comunidade.
De acordo com as antigas tradições da Arca, tradições
essas que jamais tinham sido violadas, o estranho deveria
ser imediatamente admitido, já que havia sido o primeiro a
solicitar essa admissão, após o falecimento de um dos
companheiros. Mas o Superior da comunidade, que era o
nome que se dava ao abade, era nessa ocasião um homem
prepotente, de mentalidade mundana e de coração duro.
Não se agradou da aparência do estranho que estava nu,
faminto e coberto de chagas; disse-lhe que era indigno de
ser admitido na comunidade.
O estranho insistiu em ser admitido, e esta insistência de
tal modo enfureceu o Superior que ele exigiu que o
estranho se retirasse imediatamente. O homem, porém, era
perseverante e recusava-se ir embora. E, afinal, venceu a
resistência do Superior, que o admitiu como servo.
Muito tempo esteve o Superior à espera de que a
Providência lhe enviasse um companheiro para substituir o
que havia falecido. Foi em vão. Ninguém apareceu. E
assim, pela primeira vez na sua história, a Arca alojava
oito companheiros e um servo.
Passaram-se sete anos e o mosteiro se tornou tão rico que
já ninguém podia calcular a quanto montava sua imensa
riqueza. Possuía todas as terras e vilas por muitas milhas
ao seu redor. O superior estava muito contente, e passara a
ter uma boa disposição para com o estranho, acreditando
que esta havia trazido “sorte” para a Arca.
Ao iniciar-se o oitavo ano, porém, a situação começou a
modificar-se lentamente. A antiga e pacífica irmandade
principiou a fermentar. O esperto Superior logo percebeu
que a causa daquilo era o estranho e resolveu expulsá-lo.
Era tarde! Muito tarde! Os monges, sob a sua direção, já
não se conformavam com regra ou razão alguma. Em dois
anos doaram todas as propriedades do mosteiro, pessoais
ou gerais. Os inúmeros arrendatários de terras passaram a
ser proprietários. No terceiro ano todos os monges
abandonaram o mosteiro. E, o que é mais terrível, o
estranho amaldiçoou o Superior, dizendo que ele ficaria
preso àquele local e se tornaria mudo.
Essa é a lenda.
Não faltaram testemunhas que afirmassem tê-lo visto
várias vezes, quer de noite, quer de dia, a vagar pelas
terras do mosteiro abandonado, deserto e reduzido a
ruínas. No entanto, ninguém jamais conseguira arrancar
uma única palavra de seus lábios. Mais ainda, de cada vez
que percebia a presença de qualquer homem ou mulher,
desaparecia, ninguém sabe onde.
Confesso que esta lenda tirou-me o sossego. A visão de
um monge solitário — ou talvez a sua sombra — vagando
durante muitos anos na sede de um velho santuário, no
alto de um pico desolado como o do Altar, era por demais
obsecante para que eu pudesse abandoná-lo. Encantavame
os olhos; dominava-me o pensamento; fazia-me ferver
o sangue; queimava-me a carne e os osso.
Finalmente, decidi: — Subirei a montanha.
A Escarpa Rochosa
De frente para o oceano e elevando-se a centenas de
metros acima do nível do mar, pedregoso e quase a prumo,
o Pico do Altar mostrava-se à distância, inacessível, um
verdadeiro desafio a quem audaciosamente o tentasse
escalar. No entanto, duas veredas razoavelmente seguras
me foram mostradas, ambas tortuosas e contornando os
precipícios — uma ao sul e outra ao norte. Resolvi
desdenhá-las ambas. Entre elas, descendo diretamente do
cume e chegando bem próximo à base da montanha, pude
vislumbrar uma ladeira estreita e lisa que me parecia a
estrada real para o pico. Atraiu-me com uma força
estranha e decidi fazer dela o meu caminho.
Quando revelei a minha decisão a um dos montanheses ele
fitou-me com um par de olhos flamejantes e, juntando as
mãos, exclamou, aterrorizado:
“Pela Escarpa Rochosa?! Não seja tolo em vender por tão
pouco a sua vida. Muitos já antes o tentaram, porém
nenhum deles jamais voltou para contar o que houve. A
Escarpa Rochosa?! — Não! Jamais!”
E assim dizendo, insistiu em guiar-me pela montanha
acima. Eu, porém, delicadamente dispensei o seu auxílio.
Não posso explicar porque o seu terror causou em mim em
efeito contrário ao que seria de esperar. Ao invés de me
deter, estimulou-me a prosseguir, tornando ainda mais
firme a minha decisão de iniciar a escalada.
Certa manhã, exatamente no momento em que a escuridão
começava a dissolver-se na luz, sacudi de meus olhos os
sonhos da noite e empunhando meu bordão e sete pães,
parti para a Escarpa Rochosa. O suave alento da noite que
expirava, o pulso rápido do dia que nascia, uma ânsia de
enfrentar o mistério do monge prisioneiro e a ânsia, ainda
maior, de libertar-me de mim mesmo, ainda que fosse por
um só momento, pareciam por asas nos meus pés e dar
vivacidade a meu sangue.
Principiei a jornada com um hino no coração e firme
propósito em minh’alma. Quando, porém, depois de uma
longa e alegre caminhada, cheguei à extremidade inferior
da Escarpa e tentei a escalada com os olhos, o hino
morreu-me na garganta. Aquilo que, visto de longe, me
havia parecido uma estrada reta, suave e estendida como
uma fita, apresentava-se agora, larga, quase a prumo,
altíssima e inconquistável. Até onde minha vista
alcançava, para cima e para os lados, eu só via blocos de
cristal de rocha de vários tamanhos, eriçados de pontas
aguçadas e arestas afiados como navalhas. Nem o mais
leve sinal de vida. Toda a paisagem ao redor era de tal
modo sombria que só podia inspirar pavor. De baixo, nem
ao menos se vislumbrava o topo da montanha. Não me
deixei, porém, dissuadir.
Sentindo, ainda, flamejar no meu rosto o olhar do homem
que me havia advertido contra a escarpa, reforcei minha
decisão e principiei a escalada. Logo, porém, compreendi
que somente com os pés não poderia chegar muito longe,
pois o cristal de rocha escorregava debaixo deles
produzindo um ruído terrível como o de um milhão de
gargantas que estivessem sendo estranguladas. Para
avançar eu precisava enterrar as mãos e os joelhos, tanto
quanto os dedos dos pés, naquelas rochas móveis. Como
desejei ter a agilidade de uma cabra!
E eu avançava para cima, engatinhando em zig-zag, sem
descanso. Receava que caísse a noite antes que pudesse
atingir meu alvo. Nem me passava pela idéia desistir.
O dia tinha sido bem empregado, quando, subitamente,
senti fome. Até aquele momento nada havia comido ou
bebido. Os pães que eu havia atado em um lenço à cintura
eram uma preciosidade cujo valor eu bem podia avaliar
naquele instante. Desamarrei-os e estava para quebrar o
primeiro bocado, quando senti soar nos meus ouvidos o
som de uma sineta e algo que me parecia o lamento de
uma flauta. Nada me pareceria mais assustador no seio
daquela desolação rochosa.
Subitamente vi surgir, sobre uma rocha à minha direita,
uma grande cabra negra com um cincerro ao pescoço.
Antes que pudesse tomar fôlego, vi-me cercado por cabras
que me envolviam, pisando nas rochas e produzindo,
assim, um ruído muito mais horrível do que os meus
próprios pés faziam. Como se tivessem sido convidadas,
as cabras atiraram-se aos meus pães e os teriam arrancado
de minhas mãos se não tivessem ouvido a voz do pastor
que, não sei como, nem quando, surgiu a meu lado. Era
um jovem de agradável aparência — alto, forte e cheio de
alegria. Só tinha, por vestimenta, uma pele que lhe cingia
os rins, e a flauta, na sua mão direita, era sua única arma.
“Esta minha cabra-guia”, disse ele suavemente e a sorrir
— “é muito mimada. Dou-lhe pão, sempre que o tenho.
Faz, porém, muitas e muitas luas que não passa por aqui
nenhuma criatura que traga pão consigo.”


A seguir, dirigiu-se à cabra: “Vês como a Fortuna tudo
provê, minha guia fiel? Nunca descreias da Fortuna.”
E logo, abaixando-se, apanhou um pão. Julgando que ele
estivesse com fome, disse-lhe amável e sinceramente:
“Podemos partilhar esta frugal refeição. Há pão suficiente
para nós ambos... e para a cabra-guia.”
Fiquei, porém, quase paralisado de assombro a vê-lo atirar
às cabras o primeiro pão, o segundo e o terceiro... todos,
até o sétimo, tirando, de cada um, um bocado para si. O
choque que recebi foi de tal ordem que a ira começou a
ferver-me no coração. No entanto, compreendendo a
minha incapacidade, consegui aquietar um pouco a cólera
e, com expressão de espanto, voltei-me para o pastor de
cabras dizendo, como quem ao mesmo tempo suplica e
censura:
“Agora que acabaste de dar às tuas cabras o pão de um
homem faminto, não lhe vais dar um pouco de leite?”
“O leite de minhas cabras é veneno para os tolos e não
quero que nenhuma delas seja culpada da morte de
alguém, nem mesmo de um tolo.”
“Mas por que sou tolo?”
“Porque trazes sete pães para uma viagem que dura sete
vidas.”
“Deveria então ter trazido sete mil?”
“Nem um só.”
“O que me aconselhas, então, é encetar essa longa viagem
inteiramente sem provisões?”
“O caminho que não oferece provisões ao viandante não
merece a confiança deste.”
“Desejarias então que eu comesse pedras e bebesse o meu
suor?”
“A tua própria carne te bastará como pão, e o teu próprio
sangue te bastará como água. É esta a solução.”
“Levas muito longe o teu escárnio. Não posso, porém,
retribuí-lo. Aquele que come do meu pão, torna-se meu
irmão, ainda que me deixe faminto. O dia está fugindo por
trás da montanha e preciso recomeçar a minha marcha.
Queres informar-me se ainda estou muito longe de cume?”
“Estás muito perto do Esquecimento.”
E assim dizendo, colocou a flauta nos lábios e saiu
marchando ao som de agrestes notas que pareciam um
lamento dos mundos inferiores. A cabra-guia o seguiu e,
após esta, todas as outras. Durante muito tempo ainda
pude ouvir o ruído das rochas pisadas e o balir das cabras,
de mistura com os lamentos da flauta.
Tendo esquecido a fome, principiei a recuperar parte de
minha energia e minha determinação que o cabreiro havia
destruído. Se a noite me alcançasse naquela vereda
pedregosa, precisaria encontrar um local onde pudesse
repousar os ossos cansados, sem correr o risco de rolar
pelo despenhadeiro abaixo. Recomecei a engatinhar.
Olhando para baixo, mal podia acreditar que já tivesse
subido tanto. O início da vereda escarpada já não mais
estava à vista. E olhando para cima, parecia-me que dentro
em pouco alcançaria o cume.
Ao cair da noite atingi um grupo de rochas que formavam
como que uma gruta. Conquanto a gruta ficasse no topo de
um abismo, em cujo fundo se podiam ver sombras negras
e pavorosas, resolvi dela fazer minha pousada para a noite.
Minhas sandálias estavam esfarrapadas e tintas de sangue.
Quando tentei tirá-las, descobri que minha pele a elas se
havia colado. As palmas de minhas mãos estavam cobertas
de casca, arrancados de uma árvore morta. A maior parte
das minhas roupas tinha sido arrancada pelas pedras
agudas. Sentia a cabeça andar à roda, de tanto sono. A
mente me parecia estar vazia de qualquer pensamento ou
idéia.
Quanto tempo estive adormecido — um momento, uma
hora ou uma eternidade — não sei. Mas despertei sentindo
que me puxavam, com força, pela manga. Sentando-me,
assustado e ainda tonto de sono, vi uma jovem de pé,
diante de mim, com uma lanterna mortiça na mão. Estava
completamente nua e era delicadamente bela de corpo e de
rosto. Quem me puxava pela manga do casaco era uma
velha tão feia quanto era bela a moça. Senti um calafrio
que me fez tremer da cabeça aos pés.
“Vês como a boa Fortuna tudo provê, minha filha? —
dizia a velha ao mesmo tempo em que me despia a metade
do casaco — “Nunca duvides da Fortuna.”
Eu sentia a língua como que paralisada e não fazia o
menor esforço para falar e menos ainda para resistir. Era
em vão que apelava para a minha vontade. Esta parecia
ter-me abandonado. Sentia-me completamente incapaz de
reagir, nas mãos da velha, conquanto pudesse atirá-la, bem
como a filha, para fora da gruta, se assim o quisesse. Não
podia, porém, nem mesmo querer e não tinha capacidade
de as expulsar.
Não contente em me haver despido o casaco, a mulher
passou a despir-me as outras peças de roupa até deixar-me
inteiramente nu. À medida que me despia, entregava as
peças de roupa à jovem, que as ia vestindo. A sombra de
meu corpo nu se projetou na parede da gruta, juntamente
com as sombras das mulheres esfarrapadas, o que me
punha amedrontado e aborrecido. Olhava para aquilo sem
compreender e nada dizia, quando mais precisava falar, já
que a voz era a única arma que possuía naquela situação
desagradável. Finalmente minha língua soltou-se e eu
disse:
“Se tendes perdido o pudor, velha, eu não o perdi. Estou
envergonhado de minha nudez, mesmo diante de uma
velha bruxa como vós. Mais envergonhado, porém, me
sinto diante da inocência desta moça.”
“Assim como ela usa a tua vergonha, usa tu, a sua
inocência.”
“Que necessidade tem uma jovem das roupas esfarrapadas
de um homem cansado e que se acha perdido numa noite
como esta, em lugar como este, nas montanhas?”
Talvez para aliviar-te de tua carga. Talvez para aquecer-se.
Os dentes da pobre menina estão batendo de frio.”
Mas quando o frio fizer os meus dentes baterem, como
poderei afugentá-lo? Não tendes piedade em vosso
coração?”
Quanto menos possuíres, menos serás possuído;
Quanto mais possuíres, mais serás possuído.
Quando mais possuído, mais serás taxado;
Quando menos possuído, menos serás taxado.
Vamos embora, minha filha.
Ao tomar ela a mão da jovem, e quando já se iam retirar,
vieram-me à mente um milheiro de perguntas que eu
desejaria fazer. Só uma, porém, chegou-me à ponta da
língua:
“Antes de vos retirardes, velha, podereis ter a bondade de
me dizer se ainda estou muito distante do cume?”
“Tu estás à beira do Abismo Negro.”
A luz mortiça da lanterna lançou novamente, para mim,
aquelas sombras estranhas, quando as duas se retiraram da
gruta, desaparecendo na noite negra como fuligem. Uma
onda de frio, que não sei de onde vinha, atingiu-me. Ondas
mais negras e mais frias seguiram-se. As próprias paredes
da gruta pareciam estar suando gelo. Meus dentes se
puseram a bater, e com isso surgiram os pensamentos mais
confusos: as cabras pastando nas rochas, o pastor
zombeteiro, esta velha e esta jovem; eu nu, machucado,
ferido, com fome, frio, confuso, naquela gruta, à orla de
um tal abismo. Estaria eu perto do meu alvo? Conseguiria
atingi-lo? Esta noite teria fim?
Mal eu havia recolhido, ouvi o ladrar de um cão, vi outra
luz pertíssimo, dentro mesmo da gruta.
“Vês, como a boa Fortuna provê, minha querida? Nunca
duvides da Fortuna.” A voz era de um velho, muito idoso,
barbado, curvado e com os joelhos trêmulos. Falava com
uma mulher tão velha quanto ele, sem dentes, descabelada
e também curvada e com os joelhos trêmulos.
Aparentemente, sem tomar conhecimento da minha
presença, ele continuou com a mesma voz que parecia
lutar para lhe sair da garganta:
“Uma luxuosa câmara nupcial para o nosso amor e um
esplêndido cajado para substituir o que perdeste.”
E assim dizendo, apanhou o meu cajado e o deu à velha,
que se curvou sobre ele, acariciando-o com suas mãos
encarquilhadas. Depois, como quem só então dava pela
minha presença, mas sempre falando com a sua
companheira:
“O estranho vai partir imediatamente, querida, e nós
poderemos sonhar nossos sonhos sozinhos.”
Estas palavras caíram sobre mim como uma ordem à qual
eu me sentia incapaz de desobedecer, especialmente
quando o cão se aproximou rosnando, ameaçadoramente,
como que para me fazer cumprir a ordem de seu dono. A
cena encheu-me de horror. Eu assistia como se estivesse
sob o efeito de um encantamento... e foi nesse estado que
caminhei até à saída da gruta, fazendo esforços
desesperados para falar, para defender-me, para assegurar
meus direitos.
“Levastes o meu cajado. Sereis tão cruéis que me
expulsareis desta gruta que deveria ser meu lar por esta
noite?”
Felizes os que não têm cajado,
pois não tropeçam.
Felizes os que não têm lar,
Pois estão em casa.
Só os que tropeçam — como nós —
Precisam andar com cajados.
Só os que estão presos a um lar — como nós —
Precisam ter um lar.
Assim cantavam eles, em dueto, enquanto preparavam o
leito, nivelando o cascalho com suas longas unhas, sem
prestarem atenção em mim. Fizeram-me gritar, no auge de
desespero:
“Olhai para as minhas mãos. Olhai para os meus pés. Sou
um viandante perdido nesta encosta. Tracei com meu
próprio sangue o meu caminho até aqui. Já não posso ver
uma única polegada mais desta pavorosa montanha que
parece ser tão familiar para vós. Não tendes receio de
pagar por isto? Dai-me ao menos a vossa lanterna, se não
quereis permitir que eu compartilhe esta gruta convosco,
por esta noite.”
O amor não será desnudado.
A luz não será repartida.
Amai e vede.
Iluminai e sede.
Quando a noite cai,
e o dia se vai,
e a terra está morta,
quem ao viandante ajudará?
Quem isso jamais ousará?
“Exasperado a mais não poder, resolvi recorrer à súplica,
embora sentisse intimamente que era inútil, pois uma
estranha força continuava como que a empurrar-me para
fora:
“Bom velho, boa velha, embora eu esteja entorpecido pelo
frio e tonto pelo cansaço, não serei um cisco nos vossos
olhos. Também eu já provei o amor. Deixar-vos-ei meu
cajado e minha humilde pousada, que escolhestes para
vossa câmara nupcial. Só um pequeno favor vos peço em
troca: já que me negais a luz de vossa lanterna, não tereis a
bondade de me guiar para fora desta gruta e me ensinar o
caminho para o alto? Perdi o senso de direção. Não sei
quanto já subi nem quanto ainda terei que subir.”
Sem dar atenção às minhas súplicas, eles cantavam:
O verdadeiramente alto sempre está em baixo.
O verdadeiramente rápido vai sempre devagar.
O altamente sensível é entorpecido.
O altamente eloqüente é mudo.
A enchente e a vazante são uma só maré.
Quem não tem guia tem o melhor guia.
O muito grande é sempre o menor.
E tudo tem quem dá tudo que é seu.
Como último recurso pedi-lhes que me dissessem para que
lado devia voltar-me ao sair da gruta, pois a morte poderia
estar à minha espera no primeiro passo que eu desse e eu
ainda não queria morrer. Sem fôlego, esperei pela
resposta, que veio em outra extravagante canção, que me
deixou mais perplexo e exasperado do que nunca.
A borda do penhasco é dura e escarpada.
O seio do vácuo é macio e profundo.
O leão e o verme, o cedro e o vime,
O coelho e o caramujo, a lagartixa e a codorniz,
A águia e a toupeira, todos no mesmo buraco.
Um gancho. Uma isca. Só a morte compensa.
Como é em cima, assim é em baixo.
Morrer para viver ou viver para morrer.
A luz da lanterna se apagou, no momento em que deixei a
gruta, engatinhando com as mãos e os joelhos, com o cão
atrás de mim como para certificar-se de que eu realmente
saíra. A escuridão era tamanha, que me parecia sentir o
seu peso sobre as minhas pálpebras. Eu não me poderia
deter um só instante mais. O cão me fez compreender isto,
perfeitamente.
Um passo hesitante. Outro passo hesitante. Um terceiro
passo hesitante e senti que a montanha havia desaparecido
debaixo de meus pés. Senti-me colhido pelas ondas
revoltas de um mar de trevas que me roubavam o alente e
me lançavam para baixo... para baixo... para baixo.
A última visão que me passou pela mente enquanto eu
girava no vácuo do Abismo Negro foi a do satânico casal
de noivos. As últimas palavras que murmurei, quando o
alento se me gelou nas ventas, foram as que eles haviam
pronunciado:
“Morrer para viver ou viver para morrer.”
O Guardião do Livro
“Levanta-te, ó feliz estrangeiro. Atingiste o teu alvo.”
Ressecado de sede e contorcendo-me, debaixo dos raios de
um sol escaldante, descerrei levemente os olhos e dei
acordo de mim, deitado no chão, com o vulto negro de um
homem curvado sobre mim e que, com delicadeza, me
umedecia os lábios com água e, cuidadosamente, lavava os
meus ferimentos. Era cheio de corpo, de feições rudes,
com a barba e as sobrancelhas hirsutas, de olhar profundo
e aguçado, de idade muito difícil de se determinar.
Contudo, seu toque era suave e reconfortante. Foi com seu
auxílio que pude sentar-me e perguntar com voz tão
sumida, que mal soava aos meus próprios ouvidos.
“Onde estou?”
“No Pico do Altar.”
“E a gruta?”
“Atrás de ti.”
“E o Abismo Negro?”
“Na tua frente.”
Era imenso o meu assombro, quando olhei e vi atrás de
mim a gruta e na minha frente o negro abismo como uma
imensa boca escancarada. Eu me encontrava bem à beira
do precipício, e então pedi ao homem que me levasse para
dentro da gruta, o que ele me fez com a maior boa
vontade.
“Quem me tirou do Abismo?”
“Aquele que te guiou até o alto, deve ter-te tirado do
Abismo.”
“Quem é ele?”
“O mesmo ele que atou a minha língua e me manteve
prisioneiro neste Pico, durante cento e cinqüenta anos.”
“Vós sois, então, o abade prisioneiro?”
“Sim, sou.”
“Mas vós falais; ele é mudo!”
“Tu desataste a minha língua.”
“Ele evita a companhia dos homens; vós, ao que parece,
não tendes medo de mim.”
“Evito todos os homens, menos tu.”
“Jamais, até hoje, viste o meu rosto. Por que evitais todos
os homens, menos eu?”
“Durante cento e cinqüenta anos estive à tua espera.
Durante cento e cinqüenta anos, sem falhar um só dia, em
todas as estações do ano e com todo e qualquer tempo,
meus olhos pecadores procuraram por entre os rochedos
da Escarpa, um homem que houvesse subido a montanha,
aqui chegando como tu chegaste, sem cajado, nu e sem
provisões. Muitos foram os que tentaram por outros
caminhos, porém não vinham sem cajado, nus e sem
provisões. Durante todo o dia de ontem, estive a observar
a tua caminhada. À noite deixei que dormisses na gruta,
mas ao alvorecer aqui vim e te encontrei desacordado e
sem alento. Mas tinha certeza de que voltarias à vida. Aí
está! Mais vivo do que eu. Tu morreste para viver. Eu
estou vivendo para morrer. Glória seja dada ao seu nome!
Tudo se passou conforme as suas promessas. Tudo foi
como deveria ser. Não tenho a menor dúvida de que és o
escolhido.”


“Quem?”
“O bem aventurado em cujas mãos devo entregar o livro
sagrado para que o publique e o entregue ao mundo.”
“Que livro?”
“O seu livro — O Livro de Mirdad.”
“Mirdad? Quem é Mirdad?”
“Será possível que não tenhais ouvido falar em Mirdad?
Que coisa estranha! Eu estava absolutamente certo de que
nesta época já o seu nome houvesse sido propagado por
toda a terra, tal como interpenetra o solo debaixo dos meus
pés e o céu por cima de mim. Este solo é sagrado, é
estrangeiro, seus pés o pisaram. Sagrado é este ar que nos
envolve; seus pulmões o respiraram. Sagrado é este céu
que nos cobre; seus olhos o perscrutaram.”
E assim dizendo, o monge curvou-se reverentemente,
beijou três vezes o solo e calou-se. Depois de uma pausa
eu disse:
“Acicatais o meu desejo de saber mais a respeito
desse homem, que chamais de Mirdad.”
“Volta para mim o teu ouvido e eu te contarei tudo o
que me é permitido contar. Meu nome é Shamadam. Eu
era o Superior da Arca no dia em que faleceu um dos
companheiros. Mas havia a sua alma partido e eis que me
vieram avisar de que um estranho se achava ao portão
pedindo para falar-me. Bem sabia eu que ele havia sido
enviado pela Providência, para tomar o lugar do
companheiro falecido, e devia ter-me regozijado, pelo fato
de Deus ainda estar cuidando da Arca, tal como havia feito
desde a época de nosso pai Sem.”
Nesta altura eu o interrompi para perguntar se era
verdade o que havia contado o povo da falda da montanha,
de que a Arca fora construída pelo primeiro filho de Noé.
Sua resposta foi imediata e enfática:
“Sim. É exatamente conforme te disseram.”
E continuou a história interrompida:
“Pois bem. Eu deveria ter-me regozijado. No entanto,
por motivos inteiramente fora de meu entendimento,
estabeleceu-se uma revolta em meu coração. Antes mesmo
de ter posto os olhos sobre o estranho, já todo o meu ser
lutava contra ele. E resolvi recusá-lo, embora no meu
íntimo estivesse certo de que, o fazendo, quebrava as
invioláveis tradições do mosteiro e, concomitantemente,
rejeitava Aquele que o havia enviado.
Quando abri o portão e o vi — um jovem de não mais de
vinte e cinco anos — senti no peito milhares de punhais
com os quais desejava feri-lo. Nu, aparentemente faminto
e sem o menor meio de proteção, nem ao menos um
cajado, parecia inteiramente indefeso. Havia porém, no
seu resto, uma luz que lhe dava um aspecto mais
invulnerável do que um cavalheiro em sua armadura e o
fazia parecer muito mais idoso do que realmente era. Todo
o meu ser, desde o mais íntimo de meu coração, bradava
contra ele. Todas as gotas de meu sangue desejavam
esmagá-lo. Não me peças explicações. Talvez o seu olhar
penetrante me houvesse desnudado a alma e eu estivesse
aterrorizado de ver minha alma nua, diante de um homem.
Talvez a sua pureza revelasse a minha imundície e me
doesse ver dilacerados os véus que até então eu vinha
tecendo para ocultá-la. Talvez houvesse uma velha
contenda entre a sua estrela e a minha. Quem sabe? Quem
poderá saber? Só ele poderá dizer.
“No tom mais ríspido e impiedoso, eu lhe disse que
não poderia ser admitido na comunidade e ordenei-lhe que
se retirasse imediatamente. Ele porém, não se moveu do
lugar e, calmamente, aconselhou-me a refletir. Seu
conselho pareceu-me um insulto e cuspi no seu rosto.
Ainda assim ele não se retirou e, limpando vagarosamente
a saliva do rosto, mais uma vez aconselhou-me a
reconsiderar minha decisão. Enquanto ele limpava a saliva
de seu rosto eu tinha a impressão de que era o meu que
estava emporcalhado com ela. Sentia-me derrotado, e no
íntimo de meu ser, admitia que a luta era desigual, sendo
ele o mais forte.”
“Como sempre sucede quando o orgulho é derrotado,
o meu se recusou a ceder e lutou até ver-se caído e pisado
no pó da terra. Eu estava quase cedendo ao pedido do
homem. Mas primeiro queria vê-lo humilhado. Ele,
porém, de modo algum se humilhava.”
“Subitamente, ele pediu alimento e roupas, e com
isso reviveram as minhas esperanças. Com a fome e o frio,
combatendo a meu favor, julguei que a batalha estivesse
vencida por mim. Cruelmente, declarei-lhe que o mosteiro
vivia de caridade e por isso não podia fazer caridade. E
assim dizendo, eu mentia desavergonhadamente, pois o
mosteiro era extraordinariamente rico para negar alimento
e roupas aos necessitados. O que eu desejava era que ele
suplicasse. Mas isso ele não fazia. Pedia como quem tinha
direito àquilo que solicitava. Havia uma aparência de
comando no seu pedido.”
“A luta durou bastante tempo, porém a situação não
mudou. Desde o início até o fim, ele comandou a batalha.
Para esconder a minha derrota, finalmente propus que ele
entrasse na Arca, porém como servo — somente como
servo. Para mim, isso era um consolo, pois, pensava eu,
seria para ele uma humilhação. No meu orgulho eu não me
dava conta de que era eu o mendigo, e não ele. Para
confirmar a minha humilhação, ele aceitou a proposta sem
ao menos murmurar. Não me passava pela idéia que,
aceitando-o como servo — mesmo como um servo — eu
estava excluindo-me. Até o último dia aferrei-me à ilusão
de que era eu, e não ele, o mestre da Arca. Ah, Mirdad!
Mirdad, que fizeste a Shamadam! Shamadam, que fizeste
a ti mesmo!”
Duas grandes lágrimas vieram molhar suas longas
barbas. Senti-me comovido e disse:
“Peço-vos que não faleis mais desse homem cuja
memória sai de vossos lábios com lágrimas.”
“Não te perturbes, abençoado mensageiro. É o
orgulho do Superior de outrora, que ainda destila estas
lágrimas de fel. É a autoridade da letra que está rangendo
os dentes contra a autoridade do espírito. Deixa o orgulho
chorar. Ele chora a sua morte. Deixa a autoridade ranger
os dentes; é pela última vez que o faz. Ah! Se os meus
olhos não estivessem tão vendados pela neblina deste
mundo, quando pela primeira vez encarei o seu rosto
celestial! Ah! Se meus ouvidos não estivessem tão
entupidos com a sabedoria deste mundo, quando foram
desafiados pela sua sabedoria divina! Ah! Se a minha
língua não estivesse tão recoberta das amargas doçuras da
carne, quando lutava com a sua língua revestida de
espírito! Tenho já colhido muito e mais ainda terei a
colher do joio da minha ilusão.”
“Durante sete anos, ele foi um humilde servo entre
nós — dócil, ativo, incapaz de ofender, inobstrutivo,
pronto a executar o menor pedido de qualquer dos
companheiros. Movia-se suavemente, como se estivesse
deslizando no ar. Nem uma só palavra lhe saía dos lábios.
Pensávamos que tivesse feito um voto de silêncio. Alguns
de nós estávamos, a princípio, inclinados a aborrecê-lo.
Ele recebia os golpes, com uma calma extra-terrena, e
dentro em pouco, nos havia forçado a lhe respeitar o
silêncio. Diferentemente do que se dava com os outros
sete Companheiros, os quais se sentiam deliciados com a
sua calma, que tinha sobre eles o efeito contagioso de um
calmante, eu a sentia opressiva e enervante. Muito esforço
fiz para perturbá-la, sempre porém em vão.”
“O nome sob o qual se nos apresentou foi MIRDAD.
Só por esse nome ele atendia. Era tudo quanto sabíamos
dele. No entanto, sua presença era profundamente sentida
por nós, tão profundamente, que raras vezes falávamos,
mesmo de coisas essenciais, a não ser depois dele se
retirar para sua cela.”
“Foram anos de abundância, os primeiros sete anos
de Mirdad. As posses do mosteiro foram aumentadas
muito além de sete vezes. Meu coração se suavizou a seu
favor e consultei seriamente a comunidade se o
admitiríamos como Companheiro, já que a Providência
não nos enviava outro.”
“Justamente nessa ocasião sucedeu o que nenhum de
nós poderia prever, e menos ainda este pobre Shamadam.
Mirdad descerrou os lábios e a tempestade foi libertada.
Deu liberdade àquilo que durante tanto tempo o seu
silêncio havia ocultado e aquilo rompeu em torrentes tão
irresistíveis que todos os Companheiros foram colhidos na
sua rápida correnteza — todos, menos este pobre
Shamadam que lutou contra ele até o fim. Tentei inverter a
situação, afirmando a minha autoridade como Superior,
mas os Companheiros não reconheciam outra autoridade
que não fosse a de Mirdad. Mirdad era o Mestre;
Shamadam não passava de um clandestino. Recorri até à
astúcia. A alguns Companheiros tentei subornar com
largas somas em ouro e prata; a outros com grandes lotes
de terra fértil. Já estava quase vencendo, quando Mirdad
percebeu a minha intriga e a desfez sem o menos esforço;
bastaram, para isso, umas poucas palavras.”
“Estranha e complicada era a doutrina que ele
sustentava. Está, toda ela, no Livro. Disso não me é
permitido falar. Mas a sua eloqüência fazia a neve parecer
piche e o piche parecer neve; tão nítida e poderosa era a
sua palavra. A essa arma que poderia eu opor? Nada,
senão o selo do mosteiro, que se achava em meu poder.
Mesmo esse já de nada me servia pois os Companheiros,
entusiasmados por suas exortações inflamadas, forçavamme
a apor o selo do mosteiro a todos os documentos que
julgavam que eu deveria legalizar. Pouco a pouco, eles
doaram todas as terras do mosteiro que a este haviam sido
doadas pelos fiéis durante muitos e muitos anos. Depois
Mirdad começou a enviá-los para fora do mosteiro em
missões, carregados de presentes para os pobres e
necessitados das vilas que cercam este monte. No último
“Dia da Arca”, que era uma das duas comemorações
anuais do mosteiro — sendo a outra o “Dia da Videira” —
Mirdad encerrou as suas loucuras ordenando a seus
companheiros que arrecadassem tudo que pertencia ao
mosteiro e distribuíssem ao povo que se havia reunido lá
fora.”
“Tudo isso eu vi com os meus olhos pecadores e está
registrado em meu coração que quase rebentou de ódio a
Mirdad. Se o ódio, somente, pudesse matar aquele que eu
abrigava em meu coração teria assassinado um milheiro de
Mirdades. Mas o seu amor era mais forte do que o meu
ódio. Mais uma vez a luta era desigual. Mais uma vez o
meu orgulho não cederia enquanto não se visse derrubado
e pisoteado no pó da terra. Ele me esmagava sem me
atacar. Eu o atacava e com isso esmagava-me a mim
mesmo. Quantas vezes tentou, com a sua amorosa
paciência, remover a trave que me impedia de ver!
Quantas vezes eu procurei outras, mais fortes e mais
opacas, para pô-las diante de meus próprios olhos! Quanto
mais amor ele demonstrava por mim, mais eu lhe retribuía
com um ódio cada vez mais forte.”
“Éramos dois soldados no campo de batalha —
Mirdad e eu. Mas ele, sozinho, era uma legião. Eu lutava
desacompanhado. Tivesse eu o apoio dos outros
Companheiros e ao fim seria o vencedor. E lhe teria
devorado o coração. Meus Companheiros, porém, lutavam
com ele, contra mim. Traidores! Mirdade, Mirdad, tu te
vingaste!”
Mais lágrimas, desta vez acompanhadas de soluços e
uma longa pausa, após a qual o Superior de novo curvouse
três vezes beijou o solo, dizendo:
“Mirdad, meu conquistador, meu senhor, minha
esperança, meu castigo e minha recompensa, perdoa a
amargura de Shamadam. A cabeça de uma cobra conserva
o seu veneno mesmo depois de separada do corpo. Mas,
felizmente, já não pode morder. Shamadam já não tem
presas agudas, nem veneno. Sustenta-o como o teu amor,
até o dia em que possa o mel destilar de sua boca, tal como
destilava da tua. Foi isto que tu lhe prometeste. Hoje o
libertaste de sua primeira prisão. Não o deixes penar por
muito tempo na segunda.”
Como se tivesse lido na minha mente a pergunta de
quais eram as prisões a que se referia, o Superior a
suspirar explicou, numa voz tão melodiosa e mudada
porém, que se poderia jurar ser de outra pessoa:
“Nesse dia, ele nos chamou a todos para dentro desta
gruta onde freqüentemente dava lições aos Sete. O sol
estava a se pôr. O vento de leste havia trazido uma neblina
cerrada que enchia as gargantas de pedra da montanha e,
como se fosse uma coberta mística se espalhava por toda a
terra desde aqui até o mar. Elevava-se até a metade desta
montanha que parecia, assim, haver-se transformado em
uma praia. No lado do ocidente havia nuvens negras
ameaçadoras, que obscureciam totalmente o sol. O Mestre,
comovido, porém, dominando sua emoção, abraçou cada
um dos Sete por sua vez, dizendo, ao abraçar o último”:
“Muitos anos vivestes vós nestas alturas. Hoje tereis
que descer ao abismo. Se não subirdes, descendo, e não
chegardes ao vale pelo ápice, as alturas vos porão tontos, e
a profundidade vos porão cegos.”
“Depois, voltando-se para mim, olhou-me terna e
longamente, nos olhos, e disse-me”:
“Quanto a ti, Shamadam, tua hora ainda não é
chegada. Terás que esperar minha volta a este pico. E
enquanto me esperas serás o guardião do meu Livro, o
qual está encerrado num cofre de ferro, debaixo do altar.
Cuida que ninguém lhe ponha as mãos. Nem mesmo as
tuas mãos devem nele tocar. Ao devido tempo enviarei o
meu mensageiro para que o leve, publique e ofereça ao
mundo.
Eis os sinais pelos quais o reconhecerás: subirá a este
cume pela Escarpa Rochosa. Iniciará sua viagem
completamente vestido, levando consigo um bastão e sete
pães; mas o encontrarás em frente desta gruta sem cajado,
sem provisões, nu, desmaiado e sem alento. Até que ele
chegue, tua língua e teus lábios serão selados e evitarás a
companhia das pessoas. Só quando o vires serás libertado
da prisão do silêncio. Depois de lhe haveres entregue o
Livro serás transformado em pedra, pedra essa que estará
guardando a entrada desta gruta até que eu volte. Dessa
prisão só eu te poderei libertar. Se julgares curta, mais
curta ela se tornará. Crê e tem paciência. Dito o quê,
também a mim abraçou.”
“E depois, voltando-se para os Sete, fez um sinal com
a mão e disse”:
“Companheiros, segui-me.”
“Marchou adiante deles, pela Escarpa, com sua nobre
cabeça erguida, seu olhar penetrando a distância, seus
santos pés mal tocando o solo. Quando chegaram à orla da
neblina, o sol surgiu na extremidade inferior da nuvem
negra que se sobrepunha ao mar, formando uma passagem
abobadada no céu, iluminada por uma luz por demais
maravilhosa para ser descrita em palavras humanas,
excessivamente refulgente para olhos humanos. E
pareceu-me que o Mestre e os seus Sete haviam sido
desligados da montanha e que caminhavam pela neblina,
pela estrada abobadada, para dentro do sol. E como me
doía ser deixado só — oh! tão só!”
Como alguém que estivesse exausto dos pesados
trabalhos de um longo dia, Shamadam subitamente
relaxou os músculos e silenciou, deixando cair a cabeça e
fechando os olhos. O peito arfava descompassadamente.
Enquanto eu meditava, procurando palavras consoladoras,
ele levantou a cabeça e disse:
“Tu és o favorito da Fortuna. Perdoa a um homem
infeliz. Falei muito — talvez demais. Nem poderia ser de
outro modo. Poderia alguém, cuja língua tivesse estado
presa durante cento e cinqüenta anos, romper o seu
silêncio, simplesmente com um “sim” ou um “não”? Pode
um Shamadam ser um Mirdad?”
“Permitis que eu vos faça uma pergunta, irmão
Shamadam?”
“Quanta bondade tua em me chamares de “irmão”.
Ninguém me deu esse tratamento desde que morreu meu
único irmão, faz isso muitos e muitos anos. Qual é a
pergunta?”
“Uma vez que Mirdad é tão grande mestre, é de se
admirar que até hoje o mundo não tenha ouvido falar nele
e nos seus sete companheiros. Como pode ser assim?”
“Talvez esteja esperando chegar o seu tempo. Talvez
ensine sob outro nome. De uma cousa estou certo: Mirdad
mudará o mundo, assim como mudou a Arca.”
“Ele deve ter falecido há muito tempo.”!
“Mirdad não. Ele é mais poderoso do que a morte.”
“Quereis dizer que ele destruirá o mundo, assim
como destruiu a Arca?”
“Não, mil vezes não! Ele libertará o mundo, assim
como libertou a nossa Arca. E então acenderá a luz eterna
que os homens como eu têm ocultado sob muitos alqueires
de ilusões e agora se queixam das trevas em que se
encontram. Ele reconstruirá nos homens aquilo que os
próprios homens destruíram. O Livro em breve estará em
tuas mãos. Lendo-o, tu verás a luz. Não me posso demorar
mais. Espera aqui até que eu volte, não deves vir comigo.”
Levantou-se e se foi, deixando-me bastante perplexo
e impaciente. Também eu me levantei, porém não fui além
da orla do abismo.
As magníficas linhas e cores da cena que se
desenrolava diante dos meus olhos de tal modo me
invadiram a alma que por um momento me senti
dissolvido e aspergido em imperceptíveis gotículas sobre
tudo aquilo e dentro daquilo tudo: sobre o mar, lá distante,
calmo e cercado de uma leve névoa cor de pérola; sobre as
colinas, estas curvadas, aquelas eretas, todas porém
erguendo-se em rápida sucessão, desde a praia em direção
ao topo dos áridos penhascos; sobre as pacíficas aldeias
situadas nas colinas emolduradas pelo verde da terra;
sobre os vales verdejantes, ao sopé das colinas, apagando
a sua sede no coração líquido que descia das montanhas e
salpicado de homens que cultivavam a terra e animais que
pastavam; dentro das gargantas e ravinas dos montes,
cicatrizes vivas da luta destes montes com o Tempo; na
brisa suave, no azul do céu e na terra acinzentada lá em
baixo. Somente quando olhar descansou de sua viagem
pousando sobre a Escarpa, voltei a lembrar-me do monge
e da envergonhada narrativa a seu respeito e de Mirdad e o
Livro. E fiquei maravilhado a pensar na poderosa mão
invisível que me havia posto em busca de uma cousa para
me dirigir à outra. E a abençoei em meu coração. Dentro
em pouco o monge voltava e, entregando-me um pequeno
pacote envolvido em tecido de linho amarelecido pelo
tempo, disse:
“Minha missão é, doravante, a tua missão.Sê-lhe fiel.
Chegou a segunda etapa de minha história. As portas de
minha prisão começam a abrir-se para receber-me. Logo
se fecharão sobre mim. Quanto tempo permanecerão
fechadas, só Mirdad poderá dizer. Logo Shamadam será
esquecido por todas as memórias. Como é doloroso, oh!
como é doloroso ser esquecido! Mas por que digo isso?
Nada jamais se apaga da memória de Mirdad. Aquele que
vive na memória de Mirdad, vive para sempre.”
Seguiu-se uma longa pausa depois da qual o Superior
levantou a cabeça e, fitando-me com olhos lacrimejantes,
continuou num sussurro que mal se podia ouvir:
“Dentro em pouco descerás para o mundo. Estás,
porém, nu e o mundo detesta a nudez. Até a sua própria
alma ele envolve em trapos. Já não necessito mais de
minhas roupas. Entrarei na gruta e as despirei a fim de que
possas, com elas cobrir a tua nudez, muito embora as
roupas de Shamadam não se ajustem senão a Shamadam.
Espero que sejam um estorvo para ti.”


Não fiz comentário algum àquela proposta,
aceitando-a em alegre silêncio. Enquanto o Superior
entrava na gruta para despir-se, desembrulhei o Livro e
principiei desajeitadamente a folhear suas páginas de
pergaminho, amarelecidas pelo tempo. Logo me senti
preso pela primeira página, que me esforcei por ler. E
continuei a ler e a ler, cada vez mais absorto.
Subconscientemente eu esperava que o Superior me
avisasse de que acabara de se despir e me chamasse para
vestir-me. Mas os minutos se passaram e ele não me
chamou.
Levantando meus olhos das páginas do Livro, olhei
para a gruta e no meio dela vi as roupas do Superior
amontoadas. Mas o próprio Superior eu não via. Chamei-o
diversas vezes, cada vez em voz mais alta. Não houve
resposta. Fiquei muito assustado e confuso. Na gruta não
havia outra saída senão aquela na frente da qual eu estava.
Por ali o Superior não saíra, disso eu não tinha a menor
dúvida. Seria ele um fantasma? Mas se eu sentira a sua
carne e os seus ossos com minha própria carne e ossos!
Além disso, ali estavam o Livro, nas minhas mãos e as
suas roupas, dentro da gruta. Talvez ele estivesse debaixo
delas. Entrei e apanhei-as uma por uma, pensando em
como era ridícula essa idéia. Muito maior pilha de roupas
do que aquela seria incapaz de ocultar o seu corpo. Teria
ele, de algum modo, conseguido sair da gruta e caído no
Abismo Negro?
Tão logo essa idéia brilhou no meu cérebro saí
apressadamente da gruta e mal tinha dado alguns passos
me vi frente a frente com uma grande rocha posta
exatamente à beira do abismo. Aquela pedra havia pouco
tempo não estava ali. Tinha a aparência de um animal
acocorado, mas a cabeça se parecia muito com a de um
homem de feições rudes, com o queixo forte e levantado,
as mandíbulas fortemente cerradas e os olhos,
semicerrados, fitando o vácuo, na direção do Norte.
O L I V R O
Este é o Livro de Mirdad — um farol e um refúgio para
aqueles que anseiam pela Libertação — conforme foi
registrado por Naronda, o mais jovem e o menor de seus
Companheiros. Quem não tiver tal anseio, afaste-se dele!
CAPÍTULO 1
Mirdad
se revela
e fala de
véus e selos
Naronda: E ao anoitecer daquele dia, eis que estavam os
Oito reunidos à volta da mesa da ceia e Mirdad se achava
afastado, de pé, aguardando ordens.
Era uma das antigas regras, entre os Companheiros,
que fosse evitado, sempre que possível, o uso da palavra
Eu, no seu falar. Estava o Companheiro Shamadam a
jactar-se de suas realizações como Superior. Citou vários
dados para mostrar o quanto contribuía para a riqueza e o
prestígio da Arca. E assim fazendo, usou em demasia, da
palavra proibida. Delicadamente o Companheiro Micayon
o repreendeu. E logo se levantou entre eles uma acalorada
discussão quanto às finalidades da regra e sobre quem a
instaurara, se o pai Noé ou o Primeiro Companheiro, ou
seja, Sem. E o calor gerou as censuras e as censuras
levaram a uma confusão tal, que muito se dizia e nada se
podia entender.
Tentando transformar aquela confusão em ridículo,
Shamadam, dirigindo-se a Mirdad, disse-lhe:
Shamadam: “Eis que aqui temos alguém que é maior
do que o patriarca. Mirdad, mostra-nos o que devemos
fazer para sair deste labirinto de palavras.”
Os olhares todos se voltaram para Mirdad. E foi
grande o nosso assombro e nosso júbilo quando, pela
primeira vez, após sete anos, ele descerrou os seus lábios e
nos falou, dizendo:
MIRDAD: Companheiros da Arca! O desejo de
Shamadam, conquanto expresso por ironia,
inconscientemente prenuncia a solene decisão de Mirdad,
pois desde o dia em que entrou nesta Arca, Mirdad havia
escolhido esta data e este local — exatamente nesta
circunstância — para romper os seus selos e remover os
seus véus, revelando-se diante de vós e do mundo.
Com sete selos tinha Mirdad selado os seus lábios.
Com sete véus havia Mirdad velado o seu rosto, para que
pudesse ensinar-vos e ao mundo, quando estivésseis
maduros para aprender, como deveis remover os selos dos
vossos lábios e os véus de vossos olhos, revelando-vos
assim inteiramente na glória que é vossa.
Velados estão os vossos olhos com grande número de
véus. Cada coisa sobre a qual lançais o vosso olhar é um
véu.
Selados estão os vossos lábios com grande número de
selos. Cada palavra que pronunciais é um selo.
As coisas, sejam quais forem as suas formas e
espécies, são somente véus e ataduras com que a Vida está
atada e velada. Como poderão os vossos olhos, que são em
si mesmos um véu e uma atadura, vos levar a algo que não
seja às ataduras e véus? E as palavras — não são elas
coisas seladas por letras e sílabas? Como poderão os
vossos lábios, que são em si mesmo selos, balbuciar algo
que não seja selos?
Os olhos podem velar, porém não podem penetrar os
véus.
Os lábios podem selar, porém não podem quebrar os
selos.
Não lhes peçais nada mais do que eles podem dar.
Essa é a parte que lhes toca na atividade do corpo e eles
bem a desempenham. Velando e selando, em alta voz vos
chamam para que busqueis o que está por trás dos véus e
por baixo dos selos.
Para penetrardes além dos véus, necessitais de olhos
outros que não aqueles dotados de pálpebras, pestanas e
sobrancelhas.
Para quebrardes os selos, necessitais de outros lábios
que não aqueles de carne, que tendes por baixo do nariz.
Vede em primeiro lugar corretamente os vossos
próprios olhos, se quiserdes ver corretamente as outras
coisas. Não com os olhos, mas através Deles, deveis olhar
para que possais ver aquilo que além deles está.
Falai primeiro, corretamente, os lábios e a língua, se
quiserdes falar corretamente as outras palavras. Não com
os lábios e a língua, mas através deles deveis falar, para
falardes todas as palavras que além deles estão.
Se não virdes e não falardes corretamente, nada mais
vereis senão a vós mesmos e nada mais pronunciareis
senão a vós mesmos. Porque em todas as coisas e além de
todas as coisas, e em todas as palavras e além de todas as
palavras, estais vós — os que olham e os que falam.
Se, pois, vosso mundo é um enigma indecifrável, é
porque vós mesmos sois enigmas indecifráveis. E se o
vosso falar é uma deplorável confusão, é porque vós sois
essa deplorável confusão.
Deixai as coisas como elas são e não vos esforceis
para modificá-las. Porque elas parecem ser o que parecem,
devido a vós parecerdes ser o que pareceis. Elas não vêem
nem falam, se vós não lhes emprestardes vista e voz. Se
elas vos falam asperamente, atentai para vossas línguas. Se
vos parecem feias, procurai a fealdade em primeiro e
último lugar nos vossos próprios olhos.
Não deveis pedir às coisas que se dispam dos seus
véus. Tirai vós próprios os vossos véus, e elas perderão os
seus. Não peçais às coisas que quebrem os seus selos.
Removei os vossos próprios selos, e todas as coisas
perderão os seus.
A chave para remover os véus de si mesmo e quebrar
os próprios selos é uma palavra que deveis trazer,
eternamente, presa em vossos lábios. É a menor e a maior
de todas as palavras. É chamada de A PALAVRA
CRIADORA.
Naronda: O Mestre calou-se; e um profundo silêncio, no
qual vibrava intensa expectativa, desceu sobre todos.
Finalmente Micayon falou com apaixonada impaciência:
Micayon: Nossos ouvidos estão ansiosos pela PALAVRA.
Nossos corações anseiam pela chave.
Rogamos-vos, Mirdad, que a profirais.
CAPÍTULO 2
acerca da
palavra criadora;
o eu é a fonte e o centro de todas as coisas
MIRDAD: Quando disserdes eu, acrescentai
imediatamente em vossos corações, “Deus seja o meu
refúgio contra a malignidade do eu e meu guia para a bemaventurança
do eu”, pois nessa palavra, tão pequena
embora, está encerrada a alma de todas as outras palavras.
Descerrai-a e imediatamente vossa boca será perfumada e
vossa língua se cobrirá de mel; de vossas palavras
ressumarão as delícias da Vida. Deixai-a fechada, e
repugnante será o vosso hálito e amarga a vossa língua;
cad uma de vossas palavras destilará o pus da Morte.
Eu, ó monges, é a Palavra Criadora. E a não ser que
vos apodereis da força mágica; e a menos que sejais donos
do poder dos mestres, gemereis quando deveríeis cantar;
estaríeis em guerra, quando deveríeis estar em paz;
estareis encerrados no cárcere das trevas, quando deveríeis
estar pairando numa atmosfera de luz.
Vosso eu nada mais é do que a vossa consciência de
Ser, silenciosa e incorpórea, que se faz sonora e corpórea.
É o inaudível que se torna audível; o invisível que se torna
visível; a visão que vos permite ver o que se não vê; a
audição que vos permite ouvir o que se não ouve. Ainda
tendes presos os vossos olhos e os vossos ouvidos. E se
não virdes com os vossos olhos e não ouvirdes com os
vossos ouvidos, nada vereis e nada ouvireis.
Basta que penseis eu, e um mar de pensamentos se
agitará dentro de vossas cabeças. Esse mar é uma criação
de vosso eu, que é, ao mesmo tempo, o pensador e o
pensamento. Se tendes pensamentos que apunhalam, que
mordem ou despedaçam, ficai certos de que somente o euem-
vós lhes deu o punhal, os dentes ou as garras.
Mirdad deseja que saibais; aquele que pode dar pode
também retirar.
Basta sentirdes eu para abrirdes uma fonte de
sentimentos em vossos corações.
Essa fonte é uma criação de vosso eu, o qual é, ao
mesmo tempo, aquilo que sente e aquilo que é sentido. Se
existem urzes espinhosas em vossos corações, foi
unicamente o eu-em-vós que lá as plantou.
Mirdad quer que saibais que quem pode facilmente
plantar, também pode, facilmente, arrancar.
Pelo mero pronunciar eu, trazeis à vida uma multidão
de palavras, cada qual símbolo de uma coisa; cada coisa,
símbolo de um mundo; cada mundo, parte de um universo.
Esse universo é criação de vosso eu, o qual é, ao mesmo
tempo, o criador e a criatura. Se houver alguns duendes
em vosso universo, podeis estar certos de que o vosso eu
foi quem os criou.
Mirdad quer que saibais que quem cria também pode
destruir.
Tal como o criador, assim é a criatura. Poderá alguém
criar algo superior a si mesmo? Ou criar algo inferior a si
próprio? Só a si mesmo — nem mais, nem menos — o
criador cria.
O eu é uma fonte da qual tudo flui e à qual tudo
reflui. Tal qual a fonte, assim é a correnteza.
O eu é uma varinha mágica. Não pode, porém, a
varinha fazer surgir coisa alguma que não esteja no
mágico. Tal como é o mágico, assim é aquilo que a sua
varinha produz.
Conforme for a vossa Consciência, assim será o
vosso eu. Conforme for o vosso eu, assim será o vosso
mundo. Se o vosso eu for claro e tiver um significado
definido, vosso mundo será claro e terá um significado
definido; então vossas palavras jamais serão confusas e as
vossas obras jamais serão ninhos de dor. Se o vosso eu for
obscuro e incerto, vosso mundo será obscuro e incerto; e
vossas palavras serão emaranhadas e confusas e as vossas
obras serão ninho de dor.
Se o vosso eu for constante e paciente, vosso mundo
será constante e paciente; sereis mais poderosos do que o
Tempo e mais espaçosos do que o Espaço.
Se o vosso eu for passageiro e inconstante, vosso
mundo será passageiro e inconstante; e vós sereis uma
baforada de fumaça que o sol em pouco irá desfazer.
Se o vosso eu for uno, vosso mundo será uno; e vós
tereis a paz eterna com todas as hostes celestiais e os
habitantes da Terra. Se o vosso eu for múltiplo, vosso
mundo será múltiplo; e estareis em perpétua guerra
convosco mesmo e com todas as criaturas dos domínios
imensuráveis de Deus.
O eu é o centro de vossa vida, de onde irradiam as
coisas que constituem a totalidade de vosso mundo e para
o qual elas convergem. Se ele for firme, o vosso mundo
será firme; e não haverá forças em cima ou em baixo que
vos possam desviar para a direita ou para a esquerda. Se
for instável, vosso mundo será instável; e sereis uma folha
indefesa colhida pelo terrível redemoinho do vento.
Alerta! Eis que o vosso mundo é firme, não há dúvida,
somente, porém, na instabilidade. E o vosso mundo é
certo, unicamente na incerteza. E é constante o vosso
mundo, mas tão só na inconstância. E o vosso mundo é
uno, mas somente na multiplicidade.
O vosso é um mundo em que os berços se tornam
sepulcros e os sepulcros se tornam berços; em que os dias
devoram as noites e as noites vomitam dias; de paz
declarando guerra e de guerra implorando paz; em que os
sorrisos flutuam sobre as lágrimas e as lágrimas brilham
nos sorrisos.

palestra

O vosso é um mundo em constante trabalho de parto,
em que a parteira é a Morte.
O vosso mundo é um mundo de crivos e peneiras, no
qual não há dois crivos ou duas peneiras iguais. E estais
sempre sofrendo a tentar passar pelo crivo o que por ele
não passa e a lutar peneirando o que se não pode peneirar.
O vosso é um mundo dividido contra si mesmo
porque o vosso eu é assim dividido.
O vosso é um mundo de barreiras e de cercas porque
o vosso eu é uma dessas barreiras e cercas. Ele põe uma
cerca para que aquilo que lhe é estranho não entre e
estabelece outra para aquilo que lhe é afim não saia. No
entanto, o que está para fora da cerca, se põe a passar para
o lado de dentro e o que está dentro se põe a passar para o
lado de fora, pois, sendo ambos prole da mesma mãe — e
também o vosso eu — não podem ser separados.
E vós, em vez de vos regozijardes com a sua feliz
união, tornais a cingir-vos para o infrutífero trabalho de
separar o inseparável. Em vez de estabelecerdes a divisão
de vosso eu, despedaçais a vossa vida na vã tentativa de
fazer uma cunha com a qual possais separar aquilo que
pensais ser o vosso eu, daquilo que julgais não ser o vosso
eu. Eis porque as palavras dos homens são embebidas de
veneno. Eis porque são os seus dias ébrios de tristeza. Eis
porque são as suas noites tão atormentadas pela dor.
Mirdad, ó monges, estabelecerá a divisão em vosso
eu para que possais viver em paz convosco mesmos, com
todos os homens e com todo o universo.
Mirdad extrairá o veneno de vosso eu, para que
possais provar as doçuras da Compreensão.
Mirdad vos ensinará a pesardes o vosso eu, para que
conheçais a alegria do Perfeito Equilíbrio.
Naronda: De novo o Mestre fez uma pausa e mais uma vez
profundo silêncio caiu sobre todos. Mais uma vez
Micayon quebrou o silêncio, dizendo:
Micayon: Torturantes são as tuas palavras, Mirdad. Abrem
várias portas, porém nos deixam no limiar. Leva-nos
adiante; faze-nos entrar.
CAPÍTULO 3
a
triunidade
sagrada e o
perfeito
equilíbrio
Mirdad: Conquanto cada um de vós esteja
centralizado em vosso eu, estais, todos vós, concentrados
em um EU — no EU único de Deus.
O EU de Deus, ó monges, é a única e eterna palavra
de Deus. Nela está Deus — a Suprema Consciência-
Manifestada. Sem ela, Ele seria um silêncio absoluto. Por
ela é o Criador autocriado. Por ela, Aquele-que-Não-tem-
Forma tomou uma multiplicidade de formas através das
quais as criaturas voltam novamente a não ter forma.
Para sentir-SE, para pensar-SE, para falar-SE, Deus
não precisa mais do que pronunciar EU.
Conseqüentemente, EU é a sua única palavra. Por isso
essa é A PALAVRA.
Quando Deus diz EU, nada fica por dizer. Mundos
vistos e mundos não vistos; coisas nascidas e que estão
para nascer; o tempo que está passando e o tempo que
ainda não passou; tudo, sem excetuar um só grão de
areia,está pronunciado e incluído nessa Palavra. Por ela
foram criadas todas as coisas. Por ela são todas as coisas
mantidas.
A não ser que signifique algo, uma palavra não passa
de um eco no vazio.
A não ser que seu significado seja eternamente o
mesmo, não será mais do que câncer na garganta e
borbulhas na língua.
A Palavra de Deus não é um eco no vazio, nem um
câncer na garganta e borbulhas na língua, a não ser para
aqueles que não possuem a Compreensão; pois a
Compreensão é o Espírito Santo que vivifica a Palavra e a
liga à Consciência; é a viga mestra do Eterno equilíbrio da
balança, cujas duas conchas são a Consciência Original e
A Palavra.
A Consciência Original — A Palavra — o Espírito de
Compreensão; eis, ó monges, a Triunidade do Ser, os Três
que são Um, o Um que é Três; co-igual, co-extenso, coeterno;
auto-equilibrado, auto-esclarecido, auto-realizado;
que jamais aumenta ou diminui; sempre em paz; sempre o
mesmo. Esse é, ó monges, o Perfeito Equilíbrio.
O homem lhe dá o nome de Deus, mas é
extraordinariamente prodigioso, para que se lhe dê um
nome. Não obstante, sagrado é o seu nome e santa é a
língua que o conserva sagrado.
Pois bem, que é o Homem senão a prole deste Deus?
Pode ser ele diferente de Deus?
Não está o carvalho encerrado na bolota? Não está
Deus envolto no Homem?
Também o Homem é, pois, uma triunidade sagrada;
uma consciência, uma palavra e uma compreensão.
Também o Homem é um criador como o seu Deus. O seu
eu é a sua criatura. Por que não é ele o equilibrado como o
seu Deus?
Se quereis saber a resposta deste enigma, ouvi o que
Mirdad vos vai revelar.
CAPÍTULO 4
O homem é
um deus
enfaixado
O homem é um deus enfaixado. O Tempo é uma
faixa. O Espaço é uma faixa. A carne é uma faixa e do
mesmo modo são faixas todos os sentidos e as coisas por
eles percebidos. A mãe sabe que as faixas não são a
criança. A criança, porém, não sabe.
O homem ainda é muito consciente de suas faixas,
que mudam de dia para dia e de idade para idade. Em vista
disso, sua consciência está constantemente fluindo; e a
palavra pela qual sua consciência se expressa, nunca é
clara e com significado definido; e a sua compreensão é
nebulosa; e a sua vida está em desequilíbrio. É a confusão
três vezes confusa.
E eis que o Homem brada por socorro. Seus gritos de
angústia reverberam pelos eons. O ar está pejado dos seus
gemidos. O mar está salgado com as suas lágrimas. A terra
está sulcada pelas suas sepulturas. Os céus estão
ensurdecidos pelas suas preces. E tudo porque ele ainda
não sabe o significado do seu EU, que é para ele a faixa e
a criança que nela está enfaixada.
Ao dizer eu, o Homem racha a Palavra em duas
partes: suas faixas — uma delas e a divina centelha
imortal — a outra. Dividirá realmente o Homem aquilo
que é Indivisível? Deus o proíbe. Nenhum poder, nem
mesmo o de Deus, poderá dividir o indivisível. É a
imaturidade do Homem que o faz imaginar a divisão. E o
Homem, o recém-nascido, cinge-se para a batalha e se põe
em guerra contra o Ser-Total, julgando-o inimigo de seu
ser.
Nesta guerra díspar, o Homem rasga suas carnes em
tiras e derrama o seu sangue em torrentes, enquanto Deus,
Pai-Mãe, amorosamente observa, pois Ele sabe que o
Homem está somente rasgando os seus pesados véus e
derramando o amargo fel que o faz cego e não o deixa ver
sua unidade com o Uno.
É esse o destino do Homem — lutar, sangrar,
desfalecer e afinal despertar e estabelecer a divisão no eu,
com sua própria carne, selando-a com o seu próprio
sangue.
Eis, ó monges, que fostes avisados — e mui
sabiamente avisados — para serdes prudentes no uso do
eu, pois, enquanto com isso vos referirdes às faixas e não
exclusivamente à criança; enquanto for para vós mais
peneira do que um cadinho, até então estareis peneirando a
vossa vaidade, para colherdes a Morte com a sua ninhada
de dores e agonias.
CAPÍTULO 5
Cadinho e
peneiras.
A palavra
de Deus
e a do homem.
A Palavra de Deus é um cadinho.
O que ela cria, derrete e funde em todo, nada
aceitando com valioso, nada rejeitando como sem valor.
Possuindo o Espírito de Compreensão, sabe muito bem
que ela e a sua criação constituem um todo; que rejeitar
uma é rejeitar tudo; que rejeitar o todo é rejeitar-se a si
mesmo. Conseqüentemente, ela tem para sempre o mesmo
objetivo e o mesmo sentido.
Entrementes, é como uma peneira a palavra do
Homem. O que ela cria, prende e expulsa. Está sempre
tornando isto como amigo e expulsando aquilo como
inimigo. Mas, freqüentemente, o amigo de ontem torna-se
o inimigo de hoje; o inimigo de hoje, o amigo de amanhã.
E assim se desencadeia a cruel inútil guerra do
Homem contra si mesmo. Tudo porque falta ao Homem o
Espírito Santo, o único que pode fazê-lo compreender que
ele e a sua criatura são uma e a mesma coisa; que expulsar
o adversário é expulsar o amigo, pois ambas as palavras
— “adversário” e “amigo” — são criações de sua palavra
— de seu eu.
Aquilo de que não gostais e atirais fora como sendo
mau, é certamente apanhado por alguém ou algo como
sendo bom. Pode acaso ser, ao mesmo tempo, duas coisas
que se excluam? Ela não é nem uma coisa nem outra, foi o
vosso eu que a fez má; outro eu a fez boa.
Não vos disse que aquele que pode criar pode
também destruir? Tal como criastes um inimigo, podeis
destruí-lo e tornar a criá-lo como amigo. Para isso, o vosso
eu precisa de um cadinho. Para isso necessitais ter o
Espírito de Compreensão.
Por isso vos digo que se orais par algo, orai em
primeiro e último lugar, pedindo Compreensão. Nunca
sejais peneiradores, meus companheiros, pois a Palavra de
Deus é Vida e a Vida é o cadinho no qual tudo se faz uno
e indivisível; tudo fica em perfeito equilíbrio e tudo é
digno de seu autor — a Triunidade Santa. Quanto mais
digno deve ser de ti!
Nunca sejais peneiradores, meus companheiros, e
tereis uma tão imensa estatura, tão onipenetrante e tão
oniabrangedara que não haverá peneiras que vos possam
conter.
Nunca sejais peneiradores, meus companheiros;
procurai em primeiro lugar o conhecimento d’A Palavra
para que possais conhecer a vossa própria palavra. E
quando souberdes a vossa palavra laçareis ao fogo todas as
vossas peneiras pois a vossa palavra e a de Deus são a
mesma, somente que a vossa ainda está sob os véus.
Mirdad vos pede que jogueis fora os véus.
A Palavra de Deus é o Tempo e o Espaço, não
medidos. Houve acaso algum tempo em que não
estivésseis com Deus? E há algum lugar em que não
estejais em Deus? Por que acorrentais então a eternidade
com horas e com estações? E por que encerrais o Espaço
em polegadas e milhas?
A Palavra de Deus é Vida não nascida e, portanto,
imortal.
Por que é a vossa, então, obstruída com o nascimento
e a morte? Não estais vós vivendo unicamente a vida de
Deus? E pode o Imortal ser a causa da Morte?
A Palavra de Deus inclui o Todo. Nela não há cercas
nem barreiras. Por que está a vossa obstruída com cercas e
barreiras?
Digo-vos que vossa própria carne e vossos próprios
ossos não são somente vossos. Inumeráveis são as mãos
que com as vossas mergulham nos eternos depósitos da
terra e do céu, de onde vêm e para onde voltam os vossos
ossos e a vossa carne.
Nem é a luz de vossos olhos somente vossa. Ela é
bem a luz de todos os que convosco compartilham o sol.
Que poderiam os vossos olhos contemplar nos meus, se
não fosse a luz dos meus? É a minha luz que me vê, em
vossos olhos. É a vossa luz que vos vê, em meus olhos.
Fosse eu uma perfeita treva e os vossos olhos,
contemplando-me, só veriam uma perfeita treva.
Nem é o vosso alento, em vosso peito, somente
vosso. Todos aqueles que respiram ou já respiram ou já
respiraram o ar, estão respirando o vosso alento. Não é o
alento de Adão que ainda enche os vossos pulmões? Não é
o coração de Adão que ainda pulsa em vossos corações?
Nem são os vossos pensamentos somente vossos. O
mar dos pensamentos os reclama como a ele pertencentes,
e assim também o fazem os seres pensantes que convosco
compartilham esse mar.
Nem são os vossos sonhos somente vossos. Todo o
universo está sonhando os vossos sonhos.
Nem são as vossas casas somente vossas. Elas são
também a habitação do vosso hóspede, da mosca, do rato e
do gato, bem como de todas as criaturas que compartilham
a casa convosco.
Cuidado pois com as cercas, Quando cercais, pondes
a Decepção para dentro delas e a Verdade para fora. E
quando vos voltais, para vos verdes, para dentro da cerca,
encontrais-vos, face a face com a Morte, que é a Decepção
com outro nome.
Inseparável de Deus, ó monges, é o Homem.
Inseparável, pois, dos semelhantes e das criaturas,
provenientes da Palavra.
A Palavra é o oceano, vós sois as nuvens. E a nuvem,
não é nuvem pelo que do oceano contêm? E, na verdade,
seria tola a nuvem que desperdiçasse a sua vida para se
firmar no espaço, tentando manter eternamente a sua
forma e a sua identidade. Que resultado colheria dessa
tolice, senão esperanças desfeitas e uma vaidade amarga?
A não ser que se perca, não se poderá achar. A não ser que
morra e desapareça como nuvem, não poderá encontrar o
oceano, que tem em si, e que é o seu único ser.
O Homem é uma nuvem que contém Deus em si. A
não ser que se esvazie a si mesmo, não poderá encontrarse.
E que alegria a de esvaziar-se!
A não ser que vos percais para sempre na Palavra,
não podereis compreender a palavra que está em vós — o
vosso eu. Ah! A alegria de perder-se!
Mais uma vez vos digo, orai pedindo Compreensão.
Quando a Sagrada Compreensão penetrar em vossos
corações, nada haverá na imensidade de Deus que não
vibre, para vós, uma alegre resposta, todas as vezes que
pronunciardes EU.
E então a própria Morte porá em vossas mãos a arma
com a qual vencereis a Morte. E então a Vida colocará nos
vossos corações a chave do seu coração sem limites, a
chave doirada do Amor.
Shamadam: Nunca sonhei que tanta sabedoria pudesse ser
espremida de um pano de pratos e de uma vassoura
(aludindo à imposição de Mirdad como servo).
MIRDAD: Tudo é fonte de sabedoria para o sábio. Para
aquele que não é sábio a própria sabedoria á loucura.
Shamadam: Tens uma língua hábil, sem dúvida. É de se
admirar que a tenhas freado por tanto tempo; se bem que
as tuas palavras são muito duras de se ouvir.
MIRDAD: Minhas palavras são macias, Shamadam. É o
teu ouvido que é duro. Infelizes daqueles que, ouvindo,
não ouvem e, vendo, não vêem.
Shamadam: Eu ouço e vejo muito bem. Não ouvirei, no
entanto, essa loucura de que Shamadam é o mesmo que
Mirdad; de que o mestre e o servo são iguais.
CAPÍTULO 6
Acerca de
mestre e servo.
os companheiros
dão sua opinião
a respeito
de Mirdad
MIRDAD: Mirdad não é o único servo de Shamadam.
Podes tu, Shamadam, contar os teus servos?
Haverá uma águia ou um falcão; haverá um cedro ou
um carvalho; haverá uma montanha ou uma estrela; haverá
um oceano ou um lago; haverá um anjo ou um rei que não
sirva a Shamadam? Não está o mundo todo a serviço de
Shamadam?
Nem é Mirdad o único mestre de Shamadam. Podes
tu, Shamadam, contar os teus mestres?
Haverá um besouro ou uma pulga; uma coruja ou um
pardal; haverá um cardo ou um renovo; haverá uma gota
de orvalho ou uma lagoa; haverá um mendigo ou um
gatuno que não sejam servidos por Shamadam? Não está
Shamadam a serviço do mundo todo? Ao fazer o seu
trabalho o mundo faz também o teu. E ao fazeres o teu
fazes também o do mundo.
A cabeça é mestra do ventre. E não menos mestre da
cabeça é o ventre.
Nada pode servir sem que seja servido, servindo, e
nada pode ser servido, sem que sirva o servente.
Em verdade te digo, Shamadam, como a todos vós: o
servo é o mestre do mestre; o mestre é o servo do servo.
Que o servo não abaixe a sua cerviz. E que não a levante o
mestre. Seja abatido o orgulho mortal do mestre. Seja
arrancada a vergonhosa vergonha do servo.
Lembrai-vos de que a Palavra é uma só. E vós, como
sílabas da Palavra, na realidade sois somente um.
Nenhuma sílaba é mais nobre do que outra, nem mais
essencial do que outra. As muitas sílabas não são mais que
uma só sílaba — mesmo A Palavra. E vos tornareis esse
monossílabo se conhecerdes o êxtase desse
impronunciável Amor-Próprio que é o amor por todos e
por tudo.
Não te falo agora como um mestre a seu servo, nem
como um servo a seu mestre, Shamadam, mas como de
irmão a irmão. Por que estás, assim, conturbado pelas
minhas palavras?
Renega-me, se assim o queres. Eu não te renegarei.
Não te disse já, há pouco, que a carne que me cobre os
ossos é a mesma que cobre os teus? Jamais te apunhalaria,
para que não viesse eu a sangrar. Embainha, pois, a tua
língua, se não queres derramar o teu sangue. Descerra o
teu coração para mim se o queres ter fechado a todo
sofrimento.
Melhor é não ter língua do que ter uma cujas palavras
são armadilhas e cardos. E as palavras serão sempre
chagas e armadilhas, até que a língua seja purificada pela
Sagrada Compreensão.
Peço-vos que examineis os vossos corações, ó
monges. Peço-vos que derrubeis todas as barreiras que
houver dentro de vós. Peço-vos que atireis fora todas as
faixas com que o vosso eu está ainda enfaixado, a fim de
que o possais ver uno com A Palavra de Deus,
eternamente em paz consigo mesma e com todos os
mundos que dela emanam.
Assim ensinava a Noé.
Assim eu agora vos ensino.

Naronda: E assim dizendo, retirou-se Mirdad para a sua
cela, deixando-nos imensamente confusos. Depois de
guardarem por algum tempo um silêncio quase esmagador,
começaram os companheiros a debandar, dizendo cada
qual, ao retirar-se, a sua opinião sobre Mirdad.
Shamadam: Um mendigo a sonhar com a coroa real.
Micayon: Ele é Clandestino. Não disse ele: “Assim
ensinava eu a Noé?”
Abimar: Um carretel de linha embaraçada.
Micaster: Uma estrela de outro firmamento.
Bennoon: A sua mente é poderosa, mas se perde em
contradições.
Zamora: Uma harpa maravilhosa, afinada numa clave que
desconhecemos.
Himbal: Uma palavra errante, em busca de um ouvido
amigo.
CAPÍTULO 7
Micayon e Naronda mantém uma palestra noturna com
Mirdad
e este os avisa do
dilúvio que está por vir rogando-lhes que
estejam prontos.
Naronda: Cerca da segunda hora do terceiro quarto, senti
que se abria a porta de minha cela e ouvi Micayon a
sussurrar para mim:
“Estás acordado, Naronda?”
“O sono não visitou minha cela esta noite, Micayon.”
“Nem nas minhas pálpebras fez o seu ninho. E ele,
achas que ele dorme?”
“Falas do Mestre?”
“Já o chamas de mestre? Permita o Fado que o seja.
Não poderei achar descanso enquanto não me certificar de
sua identidade. Vamos procurá-lo imediatamente.”
E andando nas pontas dos pés, saímos de minha cela
e entramos na do Mestre. Uma réstia de luar prateado,
entrando por uma fresta no alto da parede, iluminava o seu
humilde leito, estendido no solo. Evidentemente, não fora
ocupado naquela noite. Aquele a quem procurávamos, não
se encontrava ali onde o buscáramos.
Confusos, envergonhados e desapontados, estávamos
para volver sobre os nossos passos, quando, subitamente
sua voz amena nos chegou aos ouvidos, antes que nossos
olhos pudessem lobrigar sua graciosa figura à porta.
MIRDAD: Não vos conturbeis. Sentai-vos em paz. No
cume das montanhas a noite rapidamente se dissolve em
alvorada. A hora é propícia para a dissolução.
Micayon (perplexo e balbuciante): Perdoai-nos se somos
importunos. Não dormimos a noite toda.
MIRDAD: O sono é um auto-esquecimento muito breve.
Melhor é afogar a personalidade desperto, do que tomar
alguns goles de esquecimento, em dedais de sono. Que
buscáveis de Mirdad?
Micayon: Vínhamos para saber quem sois.
MIRDAD: Entre os homens sou um deus. Quando estou
em Deus sou um homem. Compreendeste, Micayon?
Micayon: Dizeis uma blasfêmia.
MIRDAD: Contra o Deus de Micayon...talvez. Contra o
Deus de Mirdad, jamais.
Micayon: Haverá tantos deuses, como há homens, para
que faleis de um para Micayon e outro para Mirdad?
MIRDAD: Deus não é “muitos”, Deus é único. São,
porém, muitas e diversas as sombras dos homens.
Enquanto os homens projetarem sombras na terra, o deus
de cada homem não será maior do que a sua sombra. Só o
que não tem sombra está na luz. Só o que não tem sombra
conhece o Deus único. Porque Deus é Luz, e só a Luz
pode conhecer a Luz.
Micayon: Não nos faleis em enigmas. Ainda é mui fraca a
nossa compreensão.
MIRDAD: Tudo é enigma para o homem que segue uma
sombra, pois esse tal caminha em luz emprestada e tropeça
na sua própria sombra. Quando vos tornardes flamejantes
de Compreensão, já não mais projetareis sombra.
No entanto, em breve virá a hora em que Mirdad
apanhará as vossas sombras e as queimará no sol. Então
aquilo que para vós é agora um enigma, se iluminará em
vós como uma verdade fulgurante, demasiado evidente
para que necessite de explicação.
Micayon: Não nos direis quem sois? Se soubermos o
vosso nome — o vosso verdadeiro nome — vossa pátria e
vossos antepassados, talvez possamos melhor
compreender-vos.
MIRDAD: Oh, Micayon! É como forçar uma águia a
entrar no ovo em que foi chocada, o tentar acorrentar
Mirdad com as vossas cadeias e vendá-la com os vossos
véus. Qual o nome que se pode dar a um homem que já
não está mais “na casca”? Que pátria pode conter um
homem no qual o universo este nele contido? A que
antepassados se pode referir um homem, cujo único
ancestral é Deus?
Para bem me conheceres, Micayon, é preciso que
antes conheças bem a Micayon.
Micayon: Talvez sejais um mito vestido com a aparência
de um homem.
MIRDAD: Sim, algum dia dirão que Mirdad era nada mais
que um mito. Mas dentro em pouco sabereis quão real é
este mito — muito mais real do que qualquer realidade dos
homens. O mundo agora não toma conhecimento de
Mirdad. Mirdad está constantemente atento ao mundo. Em
breve o mundo tomará conhecimento de Mirdad.
Micayon: Sois, por acaso, o Clandestino?
MIRDAD: Sou clandestino em toda arca enfrenta o
dilúvio da ilusão. Tomo nas minhas mãos o leme todas as
vezes que o capitão pede o meu auxílio. Vossos corações,
embora não o saibais, chamaram há muito tempo por mim,
em alta voz. Eis-me aqui! Mirdad aqui está para guiar-vos
em segurança, para que vós, por vossa vez, possais guiar o
mundo para fora do maior dilúvio de que jamais se teve
notícia.
Micayon: Outro dilúvio?
MIRDAD: Não destruir a Terra, mas para trazer o Céu à
Terra. Não para destruir o Homem, mas para descobrir
Deus no Homem.
Micayon: O arco-íris surgiu em nosso céu há poucos dias.
Como falais de outro dilúvio?
MIRDAD: Mais devastador do que o dilúvio de Noé será
o dilúvio que já está assolando a Terra. Uma terra coberta
de água é uma terra prenhe de promessas de Primavera.
Não porém, uma terra que está sendo cozida na febre de
seu próprio sangue.
Micayon: Devemos então esperar pelo fim? Foi-nos dito
que a vinda do Clandestino seria o sinal do fim.
MIRDAD: Não temais pela Terra. Ela é muito jovem e os
seus seios transbordam. Mais gerações do que podereis
contar ainda serão por ela amamentadas.
Nem estejais ansiosos pelo Homem, o senhor da Terra,
pois ele é indestrutível.
Sim, inextinguível é o Homem. Inexaurível é o Homem.
Entrará para a forja um homem e de lá sairá um, deus.
Mantende-vos firmes. Aprestai-vos. Mantende sob
controle vossos olhos, vossos ouvidos e vossas línguas, de
modo que vossos corações possam experimentar a fome
santa que, uma vez aplacada, vos deixará saciados por
toda a eternidade.
E precisais estar saciados para dardes de comer aos
famintos. Precisais estar fortes e firmes para amparardes
os que vacilam e estão fracos. Precisais estar preparados
para a tempestade, para poderdes abrigar todos os
peregrinos acossados pela tempestade. Precisais estar
sempre luminosos para poderdes guiar aqueles que
caminhas nas trevas.
Os fracos são uma carga pesada para os fracos. Mas para
os fortes são um agradável encargo. Procurai os fracos; a
sua fraqueza é a vossa força.
Os famintos são somente fome para os famintos. Mas para
os saciados eles são uma bem-vinda descarga. Procurai os
famintos; a vossa saciedade é a necessidade deles. Os
cegos são uma pedra de tropeço para os cegos. São porém,
marcos miliários para os enxergam. Procurai os cegos; as
suas trevas são a vossa luz.
Naronda: Neste ponto soou a trombeta chamando para a
oração da manhã.
MIRDAD: Zamora faz soar mais um dia a sua trombeta,
mais um milagre para vós bocejardes entre o deitar e o
levantar; para encherdes os vossos estômagos e os
esvaziardes, para lascardes as vossas línguas com palavras
vãs, para fazerdes muitas coisas que seria melhor não
fossem feitas e não fazerdes muitas coisas que precisam
ser feitas.
Micayon: Não devemos ir à oração, pois?
MIRDAD: Ide! Orai conforme vos tem sido ensinado a
orar. Orai de qualquer forma — por qualquer coisa. Ide!
Fazei tudo que vos tem sido ordenado fazer, até ficardes
auto-ensinados e autodirigidos, até haverdes aprendido a
fazer de cada palavra uma oração e de cada ação uma
oblata. Ide em paz. Mirdad tem que providenciar para que
a vossa refeição matinal seja abundante e doce.
CAPÍTULO 8
Os Sete buscam Mirdad no ninho da águia.
Ele os adverte de nada fazerem no escuro.
Naronda: Nesse dia Micayon e eu não comparecemos às
devoções matinais. Shamadam notou a nossa ausência, e
tendo sabido de nossa visita noturna ao Mestre, ficou
grandemente aborrecido. Não demonstrou, porém, o seu
aborrecimento, guardando a demonstração para outra
oportunidade.
Os demais companheiros ficaram muito intrigados com o
nosso comportamento e logo quiseram saber qual a sua
razão. Alguns pensaram que havia sido o Mestre que nos
aconselhara a não orar. Outros fizeram curiosas
conjecturas sobre a sua identidade, dizendo que ele nos
havia chamado à noite para dar-se a conhecer somente a
nós. Ninguém acreditava que ele fosse o Clandestino.
Todos, porém, queriam vê-lo e inquiri-lo sobre muitas
coisas.
Tinha o Mestre, por costume, depois de terminar os seus
serviços na Arca, passar as horas na gruta que ficava em
frente ao Abismo Negro, gruta essa que nos era conhecida
pelo nome de Ninho da Águia. Lá o fomos procurar, todos
nós, menos Shamadam, na tarde desse dia, e o
encontramos em profunda meditação. Seu rosto estava
iluminado, e mais ainda resplandeceu quando, ao levantar
os olhos, nos viu.
MIRDAD: Quão rapidamente encontrastes o vosso ninho!
Mirdad se regozija em vós.
Abimar: A Arca é o nosso ninho. Como dizeis que esta
gruta é o nosso ninho?
MIRDAD: A Arca já foi um Ninho.
Abimar: E agora o que é?
MIRDAD: A toca de uma toupeira, infelizmente.
Abimar: Oito toupeiras felizes, e com Mirdad são nove!
MIRDAD: Como é fácil zombar e como é difícil
compreender. No entanto, a zombaria sempre zomba do
zombador. Por que fazer trabalhar a língua em vão?
Abimar: Sois vós que zombais de nós ao nos chamar de
toupeiras. Desde quando merecemos esse apelido? Não
temos conservado aceso o fogo de Noé? Esta Arca, que foi
antigamente um abrigo para um punhado de mendigos,
não foi transformada por nós em um local mais rico do
que o mais rico palácio? Não lhe ampliamos as fronteiras
até se haver tornado um poderoso reino? Se somos
toupeiras, seremos então toupeiras-mestras.
MIRDAD: Está aceso o fogo de Noé, mas somente no
altar. De que vale isso, a não ser que sejais vós mesmos, o
altar e os vossos corações, o óleo e a lenha?
A Arca está agora sobrecarregada de ouro e prata e por
isso range e joga fortemente, pronta para ir a pique.
Antigamente a Arca-Mãe estava sobrecarregada de Vida e
não levava peso morto; por isso as profundidades eram
impotentes contra ela.
Cuidado com o peso morto, meus companheiros. Tudo é
peso morto para o homem que tem firme fé na sua
divindade. Ele se mantém no mundo, porém não lhe
carrega o peso, pois o Homem é preso por tudo aquilo que
agarra. Deixai de agarrar as coisas e elas não vos
prenderão em suas garras. Não ponhais preço às coisas,
pois a menor delas tem um valor inestimável. Vós pondes
preço a um pão. Por que não dar um preço ao Sol, ao Ar, à
Terra, ao Mar, ao suor e à engenhosidade do Homem, sem
os quais são haveria pão?
Não ponhais preço a coisa alguma, se não quiserdes
marcar um preço para as vossas vidas.
A vida do Homem não é mais cara do que aquilo que lhe é
mais caro. Tende cuidado em não considerardes vossa
vida, cujo preço é incalculável, tão barata quanto o ouro.
Ampliastes em léguas as fronteiras da Arca. Mesmo que as
tivésseis levado até os confins da Terra ainda estaríeis
encerrados e limitados. Mirdad gostaria de vos ver
cingidos e cobertos com o infinito. O mar não é mais do
que uma gota; e, no entanto, não cinge e não cobre a terra?
Quão mais infinito mar é o Homem! Não sejais infantis a
ponto de o medirdes da cabeça aos pés e pensardes que
haveis encontrado os seus limites.
Podeis ser mestres-toupeiras, conforme disse Abimar; mas
somente como as toupeiras que trabalham nas trevas.
Quanto mais trabalhado é o seu labirinto, mais longe do
sol está a sua face. Conheço os vossos labirintos, Abimar.
Vós sois um punhado, como disseste, supostamente
desligados de todas as tentações do mundo e consagrados
a Deus. No entanto, sinuosas e escuras são as veredas que
vos ligam ao mundo. Não escuto as vossas paixões
sibilarem e se agitarem? Não vejo as vossas invejas
rastejarem e se contorcerem sobre o próprio altar de vosso
Deus? Podeis ser um punhado, mas, oh! quantas legiões há
nesse punhado!
Fôsseis vós, realmente, as toupeiras-mestras que dissestes
ser, e de há muito teríeis feito um túnel, não só através da
terra, mas também através do sol e de todas as outras
esferas que giram no firmamento.
Deixai que as toupeiras cavem suas escuras veredas com o
focinho e as patas. Vós não precisais mover uma pestana
para encontrardes a vossa estrada real. Sentai-vos neste
ninho e deixai que a imaginação trabalhe. Ela é o vosso
divino guia para os maravilhosos tesouros do ser que é o
vosso reino. Segui o vosso guia com corações fortes e
impávidos. Suas pegadas, estejam elas na mais distante
estrela, vos servirão de sinal e certeza de que já lá fostes
plantados, pois não podeis imaginar coisa alguma que não
seja parte de vós.
Uma árvore não se pode espalhar além de suas raízes. O
Homem, porém, pode espalhar-se até o infinito pois tem
nela as suas raízes.
Não determineis limites para vós. Espalhai-vos até não
haver regiões em que não estejais. Espalhai-vos até que o
mundo todo esteja onde quer que estejais. Espalhai-vos até
encontrardes Deus onde quer que vos encontreis. Espalhaivos!
Espalhai-vos!
Nada façais nas trevas supondo que as trevas são um
manto impenetrável. Se não vos envergonhais de ser
homens cegados pelas trevas, envergonhais-vos, ao
menos, de ser como o morcego e o vaga-lume. Não há
trevas, meus companheiros. Há graus de luz que
satisfazem às necessidades de todas as criaturas do mundo.
Vosso dia claro é crepúsculo para a fênix. Vossa noite
fechada é dia claro para a rã. Se as trevas podem ser
descobertas, como poderão elas servir de coberta ao que
quer que seja?
Não procureis encobrir coisa alguma. Se nada revelar os
vossos segredos eles serão revelados pela cobertura. Não
mostra a tampa o que está na panela? Maldita seja a
panela, cheia de serpentes e vermes, quando a tampa é
removida.
Em verdade vos digo, nenhum alento sai de vossos
pulmões que não espalhe aos quatro ventos o último alento
de vossos peitos. Nenhum olhar deixa os olhos que não
leve consigo todo o olho — sua cobiça e o seu medo, seus
sorrisos e suas lágrimas. Nenhum sonho jamais entrou por
porta alguma, que não batesse primeiro a todas as outras
portas. Tende pois cuidado em como olhais. Tende
cuidado quanto aos sonhos que deixais entrar ou sair por
vossa porta. Se quiserdes, porém, ser livres de cuidados e
sofrimentos, Mirdad vos mostrará o caminho.
CAPÍTULO 9
O caminho para uma vida sem sofrimento.
Os companheiros querem saber se Mirdad é o clandestino.
Miscaster: Mostra-nos o caminho.
MIRDAD: Este é o caminho que leva à libertação das
preocupações e do sofrimento:
Pensai como se todos os vossos pensamentos tivessem que
ser gravados a fogo no céu, para que todos e tudo os
vissem. E, verdadeiramente, assim é.
Falai como se o mundo todo fosse um único ouvido,
atento a escutar o que dizeis. E, verdadeiramente, assim é.
Agi como se todos os vossos atos reagissem sobre vossas
cabeças. E, verdadeiramente, assim é.
Desejai como se vós fôsseis o desejo. E, verdadeiramente,
assim é.
Vivei como se o vosso Deus, Ele Próprio, tivesse
necessidade de vossa vida para viver a d’Ele. E,
verdadeiramente, Ele precisa.
Himbal: Por quanto tempo ainda continuareis a nos manter
atordoados? Falais conosco, tal como homem algum ou
livro algum, jamais nos falou.
Bennoon: Dizei-nos quem sois, para que saibamos com
que ouvido vos ouviremos. Se sois o Clandestino, dai-nos
prova disso.
MIRDAD: Falaste muito bem Bennoon. Tu tens muitos
ouvidos, por isso não podes ouvir. Se tivesses só um que
ouvisse e compreendesse, não exigirias provas.
Bennoon: O Clandestino deverá vir para julgar o mundo, e
nós da Arca nos sentaremos com ele para julgar. Devemos
preparar-nos para o Dia do Juízo?
CAPÍTULO 10
Acerca do julgamento e o dia do juízo.
MIRDAD: Não há em minha boca julgamento, e sim a
Sagrada Compreensão. Não vim para julgar o mundo,
antes foi para desjulgá-lo, pois só a Ignorância gosta de
vestir a beca e o capelo, expor a lei e aplicar as penas.
O mais impiedoso juiz da Ignorância é a própria
Ignorância. Consideremos o Homem. Não tem ele, na
ignorância, se dividido em dois, atraindo assim a morte
para si, bem como para todas as coisas deste seu mundo
dividido?
Em verdade vos digo, não há Deus e Homem, mas sim
Deus-Homem, ou Homem-Deus. Só há o UM. Não
obstante multiplicado, não obstante dividido, é para
sempre UM.
A unicidade de Deus é a eterna lei de Deus. É uma lei que
por si se cumpre. Não há necessidade de cortes de justiça
nem de juízes que o proclamam e sustentam a sua
dignidade e a sua força. O Universo — o visível e o
invisível — é uma só boca a proclamá-lo para aqueles que
têm ouvidos para ouvir. Não é o Mar — conquanto vasto e
profundo — uma só gota?
Não é a Terra — conquanto lançada tão longe — uma só
esfera?
Não são as esferas — conquanto tão numerosas — um só
universo?
Também a humanidade é um só Homem.
Semelhantemente, o Homem, com todos os seus mundos,
é uma unidade completa.
A unicidade de Deus, meus companheiros, é a única lei do
Ser. O Outro nome que se lhe dá é Amor. Sabê-la e nela
habitar, é habitar na Vida. Mas habitar em qualquer outra
lei é habitar no não-ser, ou seja, na Morte.
A Vida é colher. A Morte é espalhar. A Vida é ligar. A
Morte é desligar. Eis porque o Homem — o dualista —
está suspenso entre as duas, pois ele colhe, mas somente
espalhando. E ele liga, mas somente desligando. Ao colher
e ligar, ele guarda. A Lei e a sua recompensa, é a Vida. Ao
espalhar e desligar, ele peca contra a Lei, e a sua amarga
recompensa é a Morte.
No entanto, vós, auto-condenados, sentai-vos para julgar
os homens que já estão, como vós, auto-condenados. Que
horrível seria dois sentenciados, cada qual condenando o
outro às galés.
Menos ridículo seria dois bois no jugo, cada qual dizendo
ao outro: “Eu o poria no jugo.”
Menos macabro seria dois cadáveres, numa cova, trocando
entre si condenações à cova.
Menos digno de compaixão seria dois cegos, a arrancarem,
mutuamente, os olhos.
Evitai sentar-vos na cadeira do julgamento, meus
companheiros, pois para pronunciardes um julgamento
contra alguém ou alguma coisa, não somente deveis
conhecer a Lei e viver de acordo com ela, mas também
ouvir o testemunho. E a quem ouvireis como testemunha,
em qualquer caso que se apresente?
Chamaríeis o vento para depor em juízo? Pois o vento
auxilia e instiga qualquer ocorrência debaixo do céu.
Ou citaríeis as estrelas? Pois elas estão a par de tudo que
sucede no mundo.
Ou enviaríeis intimações a todos os mortos desde Adão até
hoje? Pois todos os mortos estão vivendo nos vivos.
Para ter um depoimento completo em qualquer caso, o
Cosmo precisa ser a testemunha. Quando puderdes levar o
Cosmo à corte, não necessitareis de cortes. Descereis da
cadeira de juiz e deixareis que a testemunha seja o juiz.
Quando conhecerdes a todos, não julgareis ninguém.
Quando puderdes recolher nos mundos, não condenareis
nem mesmo um daqueles que espalham; porque então
sabereis que o espalhar condena aquele que espalha. E em
vez de condenar o autocondenado, vos esforçareis para
que a condenação lhe seja relevada.
Muito sobrecarregado está o Homem agora com cargas
que a si mesmo se impôs. Áspera e sinuosa é a sua estrada.
Cada julgamento é uma nova carga, tanto para o que julga,
como para o que é julgado. Se quiserdes ver aliviada a
nossa carga, não julgueis homem algum. Se quiserdes que
a vossa carga desapareça, mergulhai e perdei-vos
unicamente na Palavra. Que a Compreensão guie os
vossos passos, se quiserdes que o vosso caminho seja reto
e suave.
Não é julgamento que vos trago em minhas palavras, mas
a Sagrada Compreensão.
Bennoon: E o Dia do Juízo?
MIRDAD: Cada dia, Bennoon, é um Dia de Juízo. A conta
corrente de cada criatura entra em balanço a cada abrir e
fechar de olhos. Nada fica escondido. Nada deixa de ser
pesado.
Não há pensamento, ação ou desejo que não seja
registrado no pensador, no agente ou no que desejou.
Nenhum pensamento, nenhum desejo, nenhuma ação
ficam estéreis neste mundo, mas todos se reproduzem de
acordo com a sua espécie e a sua natureza. Tudo que está
de acordo com a Lei de Deus é colhido para a Vida. Tudo
que a ela se opõe é colhido para a Morte.
Os teus dias não são todos iguais, Bennoon. Alguns são
serenos; são a colheita das horas bem vividas. Alguns são
nublados; são a dádiva das horas meio-adormecidas na
Morte e meio-alertas na Vida. E há outros que te fustigam
na tormenta, com coriscos nos olhos e trovões nas ventas.
Esmagam-te de cima; chicoteiam-te de baixo; atiram-te
para a direita e para a esquerda; achatam-te de encontro ao
solo e fazem-te comer o pó e desejares jamais haver
nascido. Esses são os frutos das horas gastas em oposição
propositada à Lei.
Assim é o mundo. As sombras que já ameaçam desde os
céus não são em nada menos sinistras do que aquelas que
anunciaram o Dilúvio. Abri os vossos olhos e vede.
Quando observais as nuvens caminhando para o Norte,
sopradas pelo vento Sul, dizeis que elas trazem chuva. Por
que não sois tão sábios em observar a direção para a qual
caminham as nuvens humanas? Não podeis ver até que
ponto os homens se enrascaram nas suas próprias redes?
O dia de desenrascar está próximo. E que dia de prova vai
ser!
As redes dos homens têm sido tecidas com veias do
coração e da alma, durante muitos, muitíssimos séculos.
Para livrar os homens de suas próprias redes será preciso
rasgar-lhes as carnes; o próprio tutano dos seus ossos terá
que ser esmagado. E os próprios homens terão que rasgar,
eles mesmos, as suas carnes e esmagar, eles mesmos, os
seus ossos.
Quando as tampas forem levantadas — como certamente
serão — e quando as panelas despejarem os seus
conteúdos — como certamente o farão — onde
esconderão os homens a sua vergonha e para onde
fugirão?
Nesse dia os vivos invejarão os mortos e os mortos
amaldiçoarão os vivos. As palavras dos homens lhes
ficarão presas na garganta e a luz se congelará nas suas
pálpebras. De seus corações sairão escorpiões e víboras e
eles gritarão atemorizados: “De onde vêm estas víboras e
estes escorpiões?”, esquecidos de que os haviam criado e
alojado em seus corações.
Abri os vossos olhos e vede. Mesmo nesta Arca, destinada
a ser um farol para um mundo que tropeça, há lama
demais para que se possa passar. Se o farol se tornou uma
armadilha, quão terrível deve ser o estado dos que se
encontram no mar!
Mirdad vos construirá uma nova arca. Exatamente aqui,
neste Ninho, ele a criará e a estabelecerá. Deste Ninho
voareis para o mundo; não levando aos homens um ramo
de oliveira, mas a Vida inexaurível. Para isso devereis
conhecer a Lei e guardá-La.
Zamora: Como conheceremos a Lei de Deus e a
guardaremos?
CAPÍTULO 11
O amor é a lei de Deus.
Mirdad adivinha uma inimizade entre dois companheiros,
pede a harpa e canta o hino da nova arca
MIRDAD: O Amor é a Lei de Deus. Viveis para que
aprendais a amar. Amais para que aprendais a viver.
Nenhuma outra lição é exigida do Homem.
E que é amar, senão aquele que ama absorver o amado de
modo a que os dois sejam um?
A quem ou a quê devemos amar? Podemos escolher uma
cera folha da Árvore da Vida e despejar sobre ela todo o
nosso coração? E o ramo que produziu essa folha? E a
haste que sustenta esse ramo? E a casca que protege essa
haste? E as raízes que alimentam a casca, os ramos e as
folhas? E o solo que envolve as raízes? E o sol, o mar e o
ar que fertilizam o solo?
Se uma pequena folha merece o vosso amor, quanto mais
o merecerá a arvora toda! O amor que corta uma fração do
todo, antecipadamente se condena ao sofrimento.
Direis: “Mas há muitas e muitas folhas em uma única
árvore: umas são sadias, outras são doentes; umas são
belas, outras feias; algumas são gigantes, outras são anãs.
Como poderemos deixar de escolher?”
E vos direi: Da palidez do doente provém a vitalidade do
sadio. E vos direi ainda mais, que a fealdade é a paleta, a
tinta e o pincel da Beleza; e que o anão não seria anão se
não tivesse dado parte de sua estrutura ao gigante.
Vós sois a Árvore da Vida. Cuidado para não dividirdes a
vós mesmos! Não ponhais um fruto contra outro fruto,
uma folha contra outra folha, um ramo contra outro ramo;
nem ponhais o ramo contra as raízes, ou a árvore contra a
terra-mãe: é exatamente isso que fazeis quando amais uma
parte mais do que o restante, ou com exclusão do restante.
Vós sois a Árvore da Vida. Vossas raízes estão em toda
parte. Vossos ramos e folhas estão em toda parte. Vossos
frutos estão em todas as bocas. Sejam quais forem os
frutos dessa árvore; sejam quais forem os seus ramos e
folhes; sejam quais forem as suas raízes, serão os vossos
frutos; serão as vossas folhas e ramos; serão as vossas
raízes. Se quiserdes que a árvore dê frutos doces e
aromáticos, se a desejardes sempre forte e verde, cuidai da
seiva com que alimentais as suas raízes.
O Amor é a seiva da Vida. O ódio é o pus da Morte. Mas o
Amor, tal como o sangue, precisa não encontrar obstáculos
para circular nas veias. Reprimi o movimento do sangue e
ele se tornará uma ameaça, uma praga. E que é o Ódio
senão o Amor reprimido ou Amor retido, tornando-se um
veneno tanto para o que alimenta como para o alimentado,
tanto para o que odeia como para o que é odiado.
Uma folha amarela na vossa Árvore da Vida é somente
uma folha à qual faltou Amor. Não culpeis a folha
amarela.
Um ramo ressequido é somente um ramo faminto de
Amor. Não culpeis o remo ressequido.
Uma fruta podre é somente uma fruta que amamentada
com Ódio. Não culpeis a fruta podre. Culpai antes o vosso
coração cego e egoísta que repartiu a seiva da vida a uns
poucos e a negou a muitos, negando-a assim a ela própria.
Não há outro amor possível senão o amor a si próprio.
Mas nenhum ser é real, senão aquele que abrange o Todo.
Eis porque Deus é Amor; porque Deus se Ama a Si
Mesmo.
Se o Amor vos faz sofrer, é porque ainda não encontrastes
o vosso próprio ser, nem achastes ainda a chave de ouro
do Amor, pois se amais um ser efêmero, o vosso amor é
efêmero.
O amor do homem pela mulher não é Amor. É algo muito
diferente. O amor dos pais pelos filhos é tão somente o
limiar do sagrado templo do Amor. Enquanto cada homem
não amar a todas as mulheres, e vive-versa; enquanto cada
criança não for filho de todos os pais e de todas as mães, e
vice-versa, deixai que os homens se gabem de carnes e
ossos que se apegam a outras carnes e ossos, mas jamais
deis a isso o sagrado nome de Amor. Será blasfêmia.
Não tereis um único amigo enquanto vos considerardes
inimigo, ainda que seja de um único homem. Como pode o
coração que abriga inimizade ser um refúgio seguro para a
amizade?
Não conhecereis a alegria do Amor enquanto houver ódio
em vossos corações. Se alimentásseis com a seiva da Vida
todas as coisas, menos um pequenino verme, esse
pequenino verme sozinho tornaria amarga a vossa vida,
pois quando amais alguém ou alguma coisa, na realidade
somente amais a vós próprios. Do mesmo modo, quando
odiais alguém ou alguma coisa, em verdade odiais a vós
mesmos, pois aquilo que odiais está inseparavelmente
ligado àquilo que amais, como o verso e o reverso da
mesma medalha. Se quiserdes ser honestos convosco
mesmo tereis que amar aqueles e aquilo que odiais e
aqueles e aquilo que vos odeia, antes de amardes o que
amais e o que vos ama.
O Amor não é uma virtude. O Amor é uma necessidade;
mais necessidade é, do que o pão e a água; mais do que a
luz e o ar.
Que ninguém se orgulhe de amar. Deveis respirar no
Amor tão natural e livremente como respirais o ar, para
dentro e para fora de vossos pulmões, pois o Amor não
precisa de ninguém que o exalte. O Amor exaltará o
coração que considerar digno de si.
Não espereis recompensa do Amor. O Amor é, em si
mesmo, recompensa suficiente para o Amor, assim como o
Ódio é, em si mesmo, castigo bastante para o Ódio.
Não peçais contas ao Amor, pois o Amor não presta
contas senão a si mesmo.
O Amor não empresta nem pode ser emprestado; o Amor
não compra nem vende; mas quando dá, ele se dá todo
inteiro; e quando toma, toma tudo. E o seu dar-se é tomar.
Conseqüentemente é o mesmo, hoje, amanhã e sempre.
Assim como um poderoso rio que se esvazia no mar é
reabastecido pelo mar, assim deveis esvaziar-vos no Amor
para que sejais para sempre enchido de Amor. A lagoa que
retém o presente que o mar lhe dá torna-se uma lagoa de
água estagnada.
Não há mais nem menos no Amor. No momento em que
tentardes graduar e medir o Amor ela desaparecerá,
deixando só amargas recordações.
Nem há agora nem depois, ou aqui e acolá no Amor.
Todas as estações são estações do Amor. Todos os locais
são próprios para serem habitados pelo Amor.
O Amor não conhece fronteiras nem obstáculos. Um amor
cuja ação é impedida por qualquer obstáculo, não merece
o nome de Amor. Sempre vos ouço dizer que o Amor é
cego, no sentido de que não vê defeitos naquele que é
amado. Essa espécie de cegueira é o máximo da visão.
Desejaríeis ser sempre tão cegos que não encontrásseis
faltas em coisa alguma?
Não! É claro e penetrante o olhar do Amor. Por isso ele
não vê faltas. Quando o Amor houver purificado a vossa
visão não vereis jamais nada que não seja digno de vosso
Amor. Só uma vista despojada de Amor, um olho faltoso,
está sempre ocupado em encontrar faltas. E quaisquer
faltas que encontre, serão as suas próprias faltas.
O Amor integra. O Ódio desintegra. Esta imensa e pesada
massa de terra e pedra, a que dais o nome de Pico do Altar
voaria rapidamente para todos os lados, se não fosse
conservada unida pela mão do Amor. Até mesmo os
vossos corpos, perecíveis como parecem ser, resistiriam à
desintegração, se amásseis com a mesma intensidade cada
uma das células que o constituem.
O Amor é paz cheia das melodias da Vida. O Ódio é a
guerra ansiosa pelos satânicos golpes da Morte.
Que preferis: o Amor para gozardes a paz eterna, ou o
ódio para estardes para sempre em guerra?
Toda a terra está viva em vós. O céu e suas hostes estão
vivos em vós. Amai, pois, a Terra e todos os seus
habitantes, se amais a vós mesmos. Amais o Céu e todos
os seus habitantes, se amais a vós mesmos.
Por que odeias Naronda, Abimar?
Naronda: Todos se chocaram com a súbita mudança no
tom de voz e nos pensamentos do Mestre, enquanto
Abimar e eu ficávamos mudos com a referência tão direta
a um desentendimento que havia entre nós e que
cuidadosamente escondíamos de todos, não tendo motivos
para crer que alguém disso suspeitasse. Todos olharam
estarrecidos para nós ambos e ficaram à espera da resposta
de Abimar.
Abimar (olhando para mim com expressão reprovadora):
Você contou algo ao Mestre, Naronda?
Naronda: Quando Abimar disse “O Mestre” meu coração
saltou de alegria no meu peito. Havia sido exatamente em
torno dessa palavra, que nos havíamos desentendido muito
tempo antes de Mirdad se haver revelado; dizendo eu que
ele era um professor que tinha vindo para nos ensinar e
Abimar insistindo em que era um homem vulgar.
MIRDAD: Não olhe para Naronda com desconfiança,
Abimar, pois ele não é culpado da tua culpa.
Abimar: Quem vos contou, então? Podeis também ler o
que está na mente dos homens?
MIRDAD: Mirdad não precisa de espiões nem de
intérpretes. Se tu amasses Mirdad como ele te ama,
facilmente lerias o que lhe vai na mente e no coração.
Abimar: Perdoai a um cego e surdo, Mestre. Abri os olhos
e os ouvidos meus, pois estou ansioso por ver e ouvir.
MIRDAD: Só o Amor faz prodígios. Se queres ver, deixa
que o Amor tome conta da pupila de teus olhos. Se queres
ouvir, deixa que o Amor tome posse dos tímpanos de teus
ouvidos.
Abimar: Mas eu a ninguém odeio, nem mesmo a Naronda.
MIRDAD: Não odiar não é amar, Abimar. O Amor é uma
força ativa; a não ser que ela guie todas as tuas ações e
passos, não poderás encontrar teu caminho; a não ser que
ela satisfaça todos os teus desejos e pensamentos, os
pensamentos serão urtigas em teus sonhos; os
pensamentos serão canções fúnebres em teus dias.
Agora meu coração é uma harpa e me sinto disposto a
cantar; onde está tua harpa, Zamora?
Zamora: Quereis que eu vá buscá-la, Mestre?
MIRDAD: Vai, Zamora.
Naronda: Zamora logo levantou-se e foi buscar a harpa.
Os demais se entreolharam, e admirados, se mantinham
em silêncio.
Ao voltar Zamora com a harpa, o Mestre gentilmente a
tomou de suas mãos e curvando-se sobre ela, ternamente
afinou corda por corda; logo depois começou a tocar a
cantar:
Deus é o comandante; navega, minha Arca!
Mesmo que o Inferno deste suas fúrias
Sobre os vivos e os mortos,
E transforme a terra em chumbo derretido,
Varrendo dos céus todos os indícios,
Deus é comandante; navega, minha Arca!
O Amor é a bússola; desliza, minha Arca!
Vai para o norte e para o sul, para o oeste e para o leste
E reparte com todos a fortuna do teu cofre.
A tempestade te levará na sua crista,
Como um farol para os navegantes nas trevas.
O Amor é a tua bússola; desliza, minha Arca”!
A Fé é tua âncora; viaja, minha Arca!
Pode o trovão ribombar e o corisco o céu riscar,
Podem as montanhas tremer e desmoronar,
E o coração do homem enfraquecer tanto,
Que se esqueça da centelha sagrada,
A Fé é tua âncora; viaja, minha Arca!
Naronda: O Mestre terminou de cantar e curvou-se sobre a
harpa, qual mãe se curva, amorosa, sobre o filho que está
amamentando. E embora suas cordas já não tremessem, a
harpa continuava a vibrar:
“Deus é o comandante; navega, minha Arca!”
E embora os lábios do Mestre estivessem fechados, sua
voz continuou reverberando durante algum tempo, através
do Ninho e flutuando em ondas pelos picos das montanhas
até as colinas, e no vale, lá em baixo; até o incansável mar,
lá em baixo; até a abóbada azul, lá em cima.
Havia uma chuva de estrelas e um arco-íris naquela voz.
Havia tremores e furacões, de mistura com brisas
cantantes e rouxinóis embriagados de canções. Havia
mares revoltos e abrumados por neblinas macias. E
parecia como se toda a criação estivesse ouvindo, com
alegre gratidão.
E parecia, ainda, que as Montanhas Alvas, com o Pico do
Altar no centro, tivessem sido subitamente separadas da
Terra e estivessem flutuando no espaço, majestosas,
poderosas e conscientes de seu destino.
Durante os três dias que se seguiram, o Mestre não dirigiu
palavra a ninguém.
CAPÍTULO 12
Acerca do Silêncio Criador.
O falar é, na melhor das hipóteses, uma mentira honesta
Naronda: Passados os três dias, nós sete, como que
impelidos por uma força irresistível, tornamos a nos reunir
e encaminhamo-nos ao Ninho da Águia. O Mestre nos
saudou, como quem estava certo de que viríamos.
MIRDAD: Mais uma vez vos dou as boas vindas, filhotes
implumes, de volta ao ninho. Dizei a Mirdad os vossos
pensamentos e os vossos desejos.
Micayon: Nosso único pensamento e desejo é estar perto
de vós, Mirdad, a fim de que possamos sentir e ouvir a
vossa verdade — para que, talvez, possamos tornar-nos
sem sombra, tal como vós o sois. O vosso silêncio, no
entanto, nos constrange a todos nós. Por acaso vos
ofendemos de algum modo?
MIRDAD: Não foi para vos afastar de mim que me
conservei em silêncio durante três dias, mas para vos
trazer para mais perto de mim. Quanto a me haverdes
ofendido, aquele que conhece a paz invencível do
Silêncio, jamais pode ser ofendido ou ofender.
Micayon: É melhor calar do que falar?
MIRDAD: O falar é, na melhor das hipóteses, uma
mentira honesta. Ao passo que o silêncio é, no pior dos
casos, uma verdade nua.
Abimar: Devemos disto concluir que até mesmo as vossas
palavras, Mirdad, conquanto honestas, são simplesmente
mentiras?
MIRDAD: Infelizmente nada mais são do que mentiras
para aqueles cujo eu não é o mesmo que o EU de Mirdad.
Enquanto todos os vossos pensamentos não forem como
pedras extraídas da mesma pedreira e todos os vossos
desejos como água extraída do mesmo poço, vossas
palavras serão, conquanto honestas, simplesmente
mentiras.
Quando o vosso eu, o meu eu e o de Deus forem um só,
dispensaremos as palavras e comungaremos perfeitamente
no Silêncio da verdade.
Como porém, o vosso eu e o meu não são o mesmo, sou
constrangido a desferir conta vós uma guerra de palavras,
para que nos possa vencer com vossas próprias armas e
vos levar à minha pedreira e ao meu poço.
E somente assim podereis ir para o mundo, vencê-lo e
subjugá-lo como eu vos haja vencido e subjugado. E
somente assim sereis preparados para guiar o mundo ao
silêncio da Consciência Suprema, para a pedreira da
Palavra, para o poço da Sagrada Compreensão.
Enquanto não fordes assim vencidos por Mirdad, não vos
tornareis inexpugnáveis na verdade e poderosos
conquistadores. Nem a palavra poderá lavar-vos da
ignonímia de sua contínua derrota, a não ser quando
houver sido derrotada por vós.
Cingi-vos, pois, para a batalha. Bruni vossos escudos e
vossas armaduras e afiai vossas espadas e vossas lanças.
Deixai também que o Silêncio bata o bombo e carregue o
estandarte.
Bennoon: Que espécie de Silêncio será esse que irá a bater
o bombo e carregar o estandarte?
MIRDAD: O silêncio no qual eu vos farei entrar é aquela
expansão infinita na qual o não-ser passa a Ser e o Ser
passa a não-ser. É aquele vácuo pavoroso onde todo som
nasce e é abafado; onde toda forma é moldada e destruída;
onde toda personalidade é criada e esmagada; onde todo
Ser é elevado e abatido. A não ser que atravesseis esse
vácuo e essa expansão em contemplação silenciosa, não
sabereis quão real é o vosso Ser, nem quão irreal o nãoser.
Nem sabereis quão ligada está a vossa realidade com
toda a Realidade.
É nesse Silêncio que espero que vagueis, para que possais
abandonar a vossa pele velha e apertada e possais andar
sem grilhões, irrestritos.
Para ele almejo que leveis os vossos cuidados, receios,
paixões e desejos, vossas invejas e vossas luxúrias, para
que as possais ver desaparecer uma a uma, libertando,
assim, os vossos ouvidos dos seus gritos incessantes e
livrando os vossos flancos da dor de sua afiada esporas.
É ali que desejo que jogueis os vossos arcos e flexas deste
mundo, com os quais esperais caçar alegria e satisfação e
na realidade só caçais o desassossego e a tristeza.
É ali que, espero, vós rastejeis para fora da tenebrosa e
sufocante concha do eu, para a luz e o ar livre do EU.
É este o Silêncio que vos recomendo, e não um mero
descanso de vossas línguas cansadas de tagarelar.
É este o Silêncio fecundo da Terra que nos recomendo, e
não o apavorante silêncio do criminoso e do velhaco.
O silêncio paciente da galinha que choca é que vos
recomendo, e não o impaciente cacarejar de sua irmã que
bota. Aquela se mantém quieta durante vinte e um dias e
espera o milagre debaixo de seu fofo peito e de suas
macias asas. A outra salta do ninho e cacareja loucamente,
anunciando que pôs um ovo.
Cuidado com a glória cacarejante, companheiros. Assim
como silenciais a vossas vergonhas, silenciai também as
vossas glórias, pois a glória cacarejante é pior que a
vergonha em silêncio e a virtude apregoada é pior do que a
iniqüidade muda.
Evitai o demasiado falar. Em cada mil palavras
pronunciadas, às vezes só há uma única que
verdadeiramente é necessário pronunciar. As restantes só
servem para nublar a mente, entupir o ouvido, cansar a
língua e cegar o coração.
Como é difícil dizer a palavra que realmente deve ser dita!
Em cada mil palavras que se escrevem, às vezes só há
uma, unicamente uma, que verdadeiramente é necessário
escrever! As restantes são somente tinta e papel
desperdiçados e minutos aos quais se deu pés de chumbo,
em vez de asas de luz.
Como é difícil, oh! como é difícil escrever a palavra que
realmente deve ser escrita!
Bennoon: Que dizeis da oração, Mestre Mirdad? Na
oração nos fazem dizer palavras demais e pedir coisas em
excesso. No entanto, raramente obremos aquilo que
pedimos.
CAPÍTULO 13
Da Oração
MIRDAD: Orais em vão quando nos dirigis a quaisquer
outros deuses que não a vós mesmos, pois em vós está o
poder de atrair, e em vós o poder de repelir.
E em vós está aquilo que atraireis e em vós está aquilo que
repelireis, pois poder receber algo é poder dar isso mesmo.
Onda há fome há alimento. Onde há alimento,
necessariamente há fome. Sofrer a dor da fome é ter a
alegria de gozar da bênção de ser farto.
Sim, na necessidade está o suprimento da necessidade.
Não é a chave uma garantia para a fechadura? E não é a
fechadura uma garantia para a chave? Não são ambas, a
fechadura e a chave, uma garantia para a porta?
Não tenhais pressa em importunar o serralheiro cada vez
que não souberdes onde pusestes a chave. O serralheiro
fez a sua tarefa e a fez bem; não se deve pedir-lhe que
torne a fazê-la, constantemente. Fazei o vosso trabalho e
deixai em paz o serralheiro; pois ele, depois de vos ter
servido, tem mais o que fazer. Retirai o mau cheiro e o
lixo de vossa memória, e certamente encontrareis a chave.
Quando Deus, o impronunciável, vos pronunciou, Ele se
pronunciou em vós. Vós, portanto, também sois
impronunciáveis.
Deus não vos dotou de nenhuma fração de Si — pois Ele é
indivisível —, mas de toda sua divindade, indivisível,
impronunciável, Ele vos dotou a vós todos. Que maior
herança podeis vós aspirar? E quem ou o que vos impede
de vos apossardes dela senão a vossa própria timidez e
cegueira?
E em vez de serem gratos por essa herança, e em vez de
procurarem os meios de tomarem posse dela, alguns
homens — cegos e ingratos! — fazem de Deus uma
espécie de quarto de despejo, ao qual levam suas dores de
dentes e de barriga, seus prejuízos nos negócios, suas
brigas, suas vinganças e suas noites de insônia. Outros
fazem de Deus sua casa do tesouro onde esperam
encontrar o que desejam, toda vez que cobiçam a posse de
todos os pechisbeques deste mundo.
Há ainda outros que fazem de Deus uma espécie d seu
guarda-livros particular. Pretendem que Deus deva não só
manter em dia as contas de suas dívidas, mas também
cobre o que lhes é devido, conseguindo sempre um grande
saldo em favor deles.
Sim, são muitas e diversas as tarefas que os homens
exigem de Deus. No entanto, poucos se lembram de que se
isso estivesse a cargo de Deus, Ele as executaria sozinho e
não precisaria de homem algum para incitá-Lo a fazê-las.
Por acaso relembrais a Deus das horas em que deve nascer
o sol ou pôr-se a lua? Lembrais a Deus de fazer brotar da
terra o grão de milho naquele tempo? Tendes que lembrá-
Lo para que aquela aranha acolá teça a sua teia? Precisais
lembrá-Lo dos filhotes do pardal naquele ninho ali? Por
acaso tendes de lembrá-Lo das inúmeras coisas, que
enchem este infinito universo?
Por que fazeis pressão com vossos insignificantes seres em
Sua memória? Sois menos favorecido em Sua vista do que
os pardais, milho e as aranhas? Por que, como eles, não
recebeis os vossos presentes e não vos ocupais com vossas
tarefas, sem muitos alarido, sem dobramentos de joelhos e
extensão de braços e sem ficardes ansiosos a espiar o
amanhã?
E onde está Deus, para que preciseis gritar nos Seus
ouvidos os vossos caprichos e as vossas vaidades, vossos
louvores, vossas queixas? Não está Ele em vós e em tudo
ao redor de vós? Não está o Seu ouvido muito mais
próximo de vossa boca do que o está vossa língua do
vosso céu da boca?
Basta a Deus a Sua divindade da qual tendes a semente.
Se Deus, tendo-vos dado a semente de Sua divindade,
tivesse que cuidar dela ao invés de vós, qual seria a vossa
virtude? E qual seria o trabalho de vossa vida? E de que
valerão todas as vossas preces?
Não leveis a Deus as vossas inúmeras preocupações e
esperanças. Não Lhe peçais para abrir as portas das quais
Ele vos deu as chaves. Mas buscai-as na vastidão de
vossos corações, pois na vastidão do coração se encontra a
chave de todas as portas. E na vastidão do coração estão
todas as coisas, pelas quais tendes sede e fome, sejam do
bem ou do mal.
Um poderoso exército aguarda o vosso chamado e
atenderá imediatamente ao vosso mais leve apelo. Quando
devidamente equipado, sabiamente disciplinado e
corajosamente comandado, poderá saltar eternidades e
destruir todas as barreiras que se opuserem ao seu ideal.
Quando mal equipado, indisciplinado e timidamente
comandado, ele ficará vagando inutilmente, ou se retirará
com rapidez diante do menor obstáculo, arrastando atrás
de si a mais negra derrota.
E não é outro esse exército, ó monges, que aqueles
diminutos corpúsculos vermelhos que estão agora
silenciosamente a circular em vossas veias; cada um deles,
um milagre de força, cada um deles, um registro completo
e exato de toda a vossa vida e de toda Vida, nos seus mais
ínfimos pormenores.
É no coração que este exército se reúne, pois o coração é
que faz o seu treinamento. Eis porque é o coração tão
famoso e tão reverenciado. Dele brotam as vossas
lágrimas de alegria e de tristeza. A ele acorrem os vossos
temores da vida e da Morte. Vossos anseios e vossos
desejos são o equipamento deste exército. Vossa Mente é
o que o disciplina. Vossa Vontade, seu instrutor e
comandante.
Quando sois capazes de equipara o vosso sangue com um
Desejo-Mestre que silencia e ultrapassa todos os desejos; e
entrega a um Pensamento-Mestre a disciplina; e
encarregais uma Vontade-Mestra do treinamento e do
comando, e não por certo vereis realizado esse desejo.
Como o santo atinge a Santidade, senão eliminando de sua
corrente sangüínea todo desejo e todo pensamento
incompatível com a santidade e depois dirigindo-o, com
uma vontade determinadora, a nada mais buscar senão a
santidade?
Em verdade vos digo que todos os desejos santos e todos
os pensamentos santos, de Adão até hoje, correrão a ajudar
o homem assim inclinado a atingir a Santidade, pois
sempre foi assim que em toda parte as águas procuram o
mar e os raios de luz procuram o sol.
Como é que o assassino executa os seus planos, senão
chicoteando o seu sangue, até que este adquira uma sede
insana de assassínio e reunindo as células deste sangue,
em fileiras cerradas, sob o látego de um pensamentomestre
assassino e comandado com uma vontade
incansável de desferir o golpe mortal?
Em verdade vos digo, que todo assassino, desde Caim até
hoje, correrá sem que seja chamado, para dar força e
firmeza ao braço do homem que está embriagado com o
assassínio, pois sempre foi assim que os corvos se
associam aos corvos e as hienas se juntam às hienas.
Orar, pois, é infundir no sangue um Desejo-Mestre, uma
Vontade-Mestra. É, pois, afinar o eu para que fique em
perfeita harmonia com o objetivo da prece.
A atmosfera deste planeta, com todos os seus pormenores,
refletida dentro de vossos corações, está fervendo com as
memórias de todas as coisas que testemunhou, desde o seu
nascimento.
Nenhuma palavra ou ação; nenhum desejo ou suspiro;
nenhum pensamento passageiro ou sonho transitório;
nenhuma aspiração de homem ou animal; nenhuma
sombra, nenhuma ilusão há, que nela não tenha registrado
até hoje o seu curso místico e assim farão pelos séculos
dos séculos. Afinai o vosso coração a qualquer um deles e
ele certamente correrá a tocá-lo nas cordas assim afinadas.
Para orardes não precisai de língua nem de lábios. Mas
antes necessitais de um coração silencioso e desperto; de
um Desejo-Mestre e, acima de tudo, de uma Vontade-
Mestra que não duvide nem hesite, pois as palavras de
nada valem, se o coração não estiver presente e desperto
em cada sílaba. E quando o coração está presente e
desperto, melhor é que a língua durma ou que se esconda
atrás dos lábios fechados.
Nem precisais de templos para neles orardes.
Quem não pode encontrar um templo em seu coração,
jamais encontrará seu coração num templo.
No entanto, estas coisas vos digo, a vós e aos que são
como vós, não porém a todos os homens, pois a maioria
dos homens ainda são como náufragos. Sentem a
necessidade de orar, porém não sabem como fazê-lo. Não
podem orar senão com palavras e não encontrarão as
palavras se vós não as puderdes nos lábios. E sentem-se
perdidos e apavorados quando se os faz percorrer a
vastidão de seus corações, mas se acham sossegados e
confortados entre as paredes dos templos e nas multidões
de criaturas com eles.
Deixai-os erigir os seus templos. Deixai-os recitar as suas
preces.
Mas a vós e a todos os homens eu rogo que oreis pela
Compreensão. Qualquer desejo que não seja este, jamais
será cumprido.
Lembrai-vos de que a chave da Vida é a Palavra Criadora.
A chave da Palavra Criadora é o Amor. A chave do Amor
é a Compreensão. Enchei os vossos corações com estas e
poupai às vossas mentes o peso de muitas orações; livrai
vossos corações da ligação a todos os deuses, que vos
escravizarão com uma dádiva que vos acariciarão com
uma das mãos para vos destruir com a outra; que estão
satisfeitos e bondosos quando os louvais, porém cheios de
ódio e vingativos quando censurados; que não vos ouvem,
senão quando os chamais, e que nada vos dão se não lhes
implorardes; que vos tendo dado, freqüentemente, se
arrependem de o terem feito; cujo incenso são as vossas
lágrimas e cuja glória é a vossa vergonha.
Sim, livrai os vossos corações de todos esses deuses para
que possais neles encontrar o único Deus que tendo-vos
enchido com Ele mesmo, vos terá cheios para sempre.
Bennoon: Às vezes falais do Homem como onipotente e às
vezes falais dele como um abandonado. Desse modo
deixa-nos confusos.
CAPÍTULO 14
O colóquio entre dois arcanjos e dois arqui-demônios,
independente do tempo em que nasceu o homem
MIRDAD: Na ocasião, independente do tempo, em que
nasceu o Homem — dois arcanjos, no pólo superior do
Universo, mantiveram a seguinte conversa:
Disse o primeiro arcanjo:
Uma criança prodigiosa nasceu à Terra e a Terra está
brilhante de luz.
Disse o segundo arcanjo:
Um glorioso rei nasceu ao Céu e o Céu está vibrando de
alegria.
1.º - Ele é o fruto da união do Céu com a Terra.
2.º - Ela é a união eterna – o pai, a mãe e o filho.
1.º - Nele a Terra é exaltada.
2.º - Nele o Céu é justificado.
1.º - O dia dorme em seus olhos.
2.º - A noite está desperta em seu coração.
1.º - Seu peito é um ninho de tempestades.
2.º - Sua garganta é uma escala de canções.
1.º - Seus braços abraçam as montanhas.
2.º - Seus dedos beliscam as estrelas.
1.º - Há mares bramindo em seus ossos.
2.º - Há sóis girando em suas veias.
1.º - Sua boca é uma forja e um molde.
2.º - Sua língua é uma bigorna e um martelo.
1.º - Em volta de seus pés estão as cadeias do
Amanhã.
2.º - No seu coração está a chave dessas cadeias.
1.º - Este nenê ainda está no berço do pó.
2.º - Mas envolto nas fraldas dos éons.
1.º - Tal como Deus, ele conhece os segredos dos
números e o mistério das palavras.
2.º - Ele sabe todos os números, exceto o número
sagrado, que é o primeiro e o último. Conhece ele todas as
palavras, menos a Palavra.
1.º - No entanto, ele saberá o Número e a Palavra.
2.º - Somente quando houver retirado os seus pés dos
caminhos perdidos do Espaço; somente quando seus olhos
já não olharem para as medonhas cavernas do Tempo.
1.º - Maravilhoso, muito maravilhoso, é este o filho
da Terra.
2.º - Glorioso, muito glorioso, é este rei dos Céus.
1.º - Aquele, que não tem nome, o chamou de
Homem.
2.º - E ele chamou O que não tem nome de Deus.
1.º - Homem é a palavra de Deus.
2.º - Deus é a palavra do Homem.
1.º - Glória Àquele cuja palavra é Homem.
2.º - Glória àquele cuja palavra é Deus.
1.º - Agora e para sempre.
2.º - Aqui e em toda parte.
Assim falaram os dois arcanjos no pólo superior do
Universo, na ocasião, independente do tempo, em que
nasceu o Homem.
Ao mesmo tempo, dois arqui-demônios, no pólo inferior
do Universo, estavam assim conversando:
Disse o primeiro arqui-demônio:
Um valente guerreiro entrou para as nossas fileiras. Com
seu auxílio venceremos.
Disse o segundo arqui-demônio:
Dize antes um covarde queixoso e manhoso. A traição está
encerrada em sua cabeça. É terrível na covardia e na
traição.
1.º - Impávido e selvagem é o seu olhar.
2.º - Lamuriento e desanimado é o seu coração. Mas
inspira pavor pelo seu desânimo e suas lágrimas.
1.º - Penetrante e perseverante é a sua mente.
2.º - Vagaroso e estúpido é o seu ouvido. Mas é
perigoso na sua vagarosidade e na sua estupidez.
1.º - Rápida e precisa é a sua mão.
2.º - Hesitantes e preguiçosos são os seus pés. Mas é
terrível a sua preguiça e alarmante a sua hesitação.
1.º - Nosso pão será aço para os seus nevos. Nosso
vinho será fogo para o seu sangue.
2.º - Ele nos apedrejará com as arcas dos nossos pães
e quebrará em nossas cabeças as bilhas do nosso vinho.
1.º - A sua concupiscência pelo nosso pão e a sua
sede pelo nosso vinho serão o seu carro na batalha.
2.º - Com uma fome insaciável e uma sede
inapagável, ele se tornará inconquistável e provocará
rebelião em nosso acampamento.
1.º - Mas a Morte será a condutora do carro.
2.º - Com a Morte como condutora do carro, ele se
tornará imortal.
1.º - Poderá a Morte levá-lo a algo que não seja a
Morte?
2.º - Ai! Tão exausta ficará a Morte de suas
constantes lamentações que acabará por levá-lo ao
acampamento da Vida.
1.º - Será a Morte traidora da Morte?
2.º - Não. A Vida será fiel à Vida.
1.º - Excitaremos o seu paladar com frutos raros e
deleitosos.
2.º - Ele ansiará por frutos que não crescem neste
pólo.
1.º - Seduziremos seus olhos e seu nariz com flores
lindas e fragrantes.
2.º - Mas os seus olhos buscarão outras flores e seu
nariz outras fragrâncias.
1.º - E encantaremos os seus ouvidos com doces e
distantes melodias.
2.º - Mas os seus ouvidos estarão voltados para outros
coros.
1.º - O medo o acorrentará a nós.
2.º - A Esperança o protegerá contra o medo.
1.º - A dor o subjugará a nós.
2.º - A Fé o libertará da dor.
1.º - Encheremos o seu sono de sonhos misteriosos e
espalharemos sombras enigmáticas nas suas andanças
despertas.
2.º - Sua fantasia desfará os mistérios e decifrará os
enigmas.
1.º - Poderemos contar com ele, como sendo um de
nós.
2.º - Conta-o como sendo uma de nós, se assim o
quiseres; mas conta-o também como sendo contra nós.
1.º - Pode ele ser, ao mesmo tempo, a nosso favor e
contra nós?
2.º - Ele é um guerreiro solitário, no campo. Seu
único adversário é a sua sombra. Conforme muda a sua
sombra, muda a batalha. Ele está conosco, quando sua
sombra está diante dele. Está contra nós, quando sua
sombra está atrás.
1.º - Não o vamos manter, então, constantemente de
costas para o Sol.
2.º - Mas quem conservará constantemente o Sol
detrás dele?
1.º - Este guerreiro é um enigma.
2.º - Esta sombra é um enigma.
1.º - Salve o cavaleiro solitário.
2.º - Salve a sombra solitária.
1.º - Salve! Quando está conosco.
2.º - Salve! Quando está contra nós.
1.º - Agora e para sempre.
2.º - Aqui e em toda parte.
Assim falaram dois arqui-demônios, no pólo inferior do
Universo, na ocasião, independente do tempo, em que
nasceu o Homem.
CAPÍTULO 15
Shamadam faz um esforço para expulsar Mirdad da Arca.
O Mestre fala acerca de insultar e ser insultado, e de
encarar o mundo com a sagrada compreensão.
Naronda: Mal havia o Mestre terminado, e eis que surgiu à
entrada do Ninho da Águia o vulto corpulento do Superior,
como que impedindo a entrada do ar e da luz. E passou-me
logo, pela mente, que o vulto, à entrada, não era senão um
dos arquidemônios, sobre os quais o Mestre acabava de
nos falar.
Seus olhos pareciam lançar chispas de fogo e sua barba
eriçou-se, quando ele avançou para o Mestre, agarrando-o
pelo braço, numa evidente tentativa de o arrancar dali.
Shamadam: Acabo de ouvir as coisas terríveis que a tua
mentalidade vil está vomitando. Tua boca é uma torneira
que verte veneno. Tua presença é um agouro de maldades.
Como Superior desta Arca, convido-te a que te retires,
imediatamente.
Naronda: O Mestre, embora franzino, com a maior
facilidade se manteve firme, como se ele fosse um gigante
e Shamadam um recém-nascido. Sua equanimidade era
admirável, ao olhar para Shamadam e responder:
MIRDAD: Só tem o poder de convidar a retirar-se, aquele
que convidou a entrar. Vós, Shamadam, por acaso me
convidaste a entrar?
Shamadam: Foi a tua baixeza que moveu o meu coração
pela piedade a permitir a tua entrada.
MIRDAD: O meu amor, Shamadam, é que moveu a vossa
baixeza. E aqui estou, Shamadam, e comigo está o meu
amor. Mas vós não estais, nem aqui nem lá. É só a vossa
sombra que esvoaça para cá e para lá. E eu vim para
recolher todas as sombras e queimá-las no Sol.
Shamadam: Eu já era Superior desta Arca muito antes que
o teu bafo principiasse a emprestar o ar. Como ousa a tua
língua vil dizer que não estou aqui?
MIRDAD: Antes que estas montanhas fossem, já eu era, e
serei depois que elas já se houverem transformado em pó.
Sou a Arca, o altar e o fogo. Se vós não vos refugiardes
em mim, sereis presa da tempestade. E se não vos
imolardes diante de mim, não conhecereis a imunidade,
contra as sempre afiadas facas dos inúmeros açougueiros
da Morte. E se o meu fogo delicado não vos consumir,
sereis combustível para o fogo cruel do Inferno.
Shamadam: Ouviste?! Não ouvistes companheiros?!
Atiremos este blasfemo impostor ao abismo!
Naronda: Novamente Shamadam atirou-se ao Mestre e o
agarrou pelo braço com vontade de arrastá-lo para fora.
Mas o Mestre não temeu e nem se moveu. Também os
companheiros não fizeram o mais leve movimento. Depois
de uma pausa enervante a cabeça de Shamadam lhe
pendeu para o peito e ele fugiu do Ninho da Águia
resmungando de si e para si: “Eu sou o Superior desta
Arca. Hei de fazer valer a autoridade que Deus me deu.”
O Mestre esteve muito tempo meditando sem falar. Mas
Zamora não se pôde conservar em paz.
Zamora: Shamadam insultou o nosso Mestre. Que quer o
Mestre que façamos com ele? Ordenai e obedeceremos.
MIRDAD: Orai por Shamadam, companheiros. É somente
isso que desejo que façais a ele. Orai para que caia a venda
dos seus olhos e a sua sombra seja iluminada.
É tão fácil atrair o bem, como atrair o mal. E tão facial
afinar-se pelo Amor, como pelo Ódio.
Do Espaço infinito e da vastidão de vosso coração retirai
bênçãos para o mundo, pois tudo quanto for uma bênção
para o mundo, será uma bênção para vós.
Orai pelo bem de todas as criaturas, pois o bem de
qualquer criatura é o vosso próprio bem, e o mal de
qualquer criatura é o vosso próprio mal.
Não sois todos vós como que degraus móveis da escada
infinita do Ser? Aqueles que quiserem subir à esfera da
Sagrada Liberdade, certamente terão que pisar nos ombros
de outros. E, por sua vez, terão de deixar que seus ombros
sejam degraus pelos quais outros terão que subir.
Que é Shamadam, senão um degrau de vosso ser?
Não quereis que vossa escada seja forte e segura? Cuidai,
pois, de cada um dos degraus para conservá-la forte e
segura.
Que é Shamadam, senão uma pedra no alicerce de vossa
vida? E que sois vós, senão pedras no edifício da sua vida
e no da vida de todas as criaturas? Cuidai de que
Shamadam seja uma pedra sem defeito, para que o vosso
edifício não tenha defeito algum. Sede vós também sem
defeitos, para que aqueles em cujas vidas fordes
construídos, possam ter o seu edifício sem defeito.
Pensai em que vós não sois dotados de mais do que dois
olhos; pois, em verdade vos digo, que todo olho que vê,
seja na Terra, acima ou abaixo dela, é uma extensão de
vossos olhos. Na medida em que a vista de vosso próximo
for nítida, será nítida a vossa vista. À medida que a vista
do vosso próximo for diminuída, a vossa também será
diminuída.
Em cada cego sois privados de um par de olhos que, se
vissem, constituiriam um reforço para os vossos.
Conservai a vista de vosso próximo, para que possais ver
melhor. Preservai a vossa para que o vosso vizinho não
tropece e caia, obstruindo, talvez, a vossa própria porta.
Zamora pensa que Shamadam me insultou. Como poderia
a ignorância de Shamadam alterar a minha Compreensão?
Um ribeirão lodoso pode, facilmente, tornar lodoso outro
ribeirão. Pode, porém, um ribeirão lodoso tornar lodoso o
mar? O mar, alegremente receberá o lodo, espalha-lo-á no
seu leito e devolverá, ao ribeirão, água limpa.
Podereis corromper ou esterilizar um metro quadrado de
terra — talvez um quilômetro quadrado. Mas quem poderá
corromper ou esterilizar a Terra? A terra recebe todas as
impurezas dos homens e dos animais e lhes devolve frutos
doces, flores perfumadas, cereais e erva em abundância.
Uma espada pode, certamente, ferir a carne. Pode ela,
porém, ferir o ar, por mais afiada que seja o seu gume, e
por mais forte que seja o braço que a empunha?
É o orgulho de um eu mesquinho e tacanho, possuído de
uma ignorância cega e impudica, que possibilita insultar e
considerar-se insultado e que se vinga do insulto,
insultando, e lava a imundície com a imundície.
O mundo, que é presa do orgulho e está embriagado com o
seu eu, amontoará injúrias sobre as vossas cabeças. Soltará
sobre vós os cães sedentos de sangue de suas leis
andrajosas, de suas crenças podres, de suas honrarias
mofadas. Proclamará que sois inimigos da ordem e
agentes do caos e da ruína. Espalhará ciladas em vosso
caminho e encherá vossa cama de urtigas. Jogará
maldições nos vossos ouvidos e cuspirá o desprezo em
vosso rosto.
Não deixeis enfraquecer o vosso coração. Sede como o
Mar, vasto e profundo, e abençoai os que vos maldizem.
E como a Terra, sede generosos e calmos, transformando
as impurezas dos corações humanos em pureza, saúde e
beleza. Sede como o Ar, livre e suave. A espada, que vos
deveria ferir, acabará perdendo o brilho e enferrujando. O
braço, que vos deveria lesar, ficará fraco e inativo.
O mundo, não vos conhecendo, não vos poderá conter. Por
isso vos receberá rosnando. Mas vós, conhecendo o
mundo, podereis contê-lo. Por isso, deveis acalmar a sua
ira, com a bondade, e afogar a sua calúnia com amorosa
Compreensão.
E a Compreensão trará a alvorada.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
Naronda: A seguir, nós Sete debandamos em silêncio, pois
já havíamos percebido que todas as vezes que o Mestre
concluía com as palavras “Assim ensinei eu a Noé”, era
sinal de que não queria falar mais.
CAPÍTULO 16
Acerca de credores e devedores.
Que é o dinheiro? Rustidion é perdoado de sua dívida para
com a Arca.
Naronda: Certo dia, quando nós Sete e o Mestre estávamos
voltando do Ninho da Águia, vimos Shamadam ao portão,
agitando um documento que tinha na mão, diante de um
homem que se achava prostrado a seus pés. Dizia
Shamadam, bastante zangado:
— O teu delito esgota a minha paciência, não posso mais
ser tolerante. Ou pagas já, ou irás apodrecer na prisão!
Reconhecemos o homem como sendo Rustidion, um dos
arrendatários da Arca, que se achava em débito de certa
soma de dinheiro para com esta. Esfarrapado e
envelhecido, suplicava ao Superior que lhe desse prazo
para pagar os juros, dizendo que numa só semana havia
perdido o único filho e a única vaca que possuía, em
conseqüência do que, sua velha esposa havia sido
acometida de paralisia. O coração de Shamadam, porém
não se enternecia.
O Mestre foi ao encontro de Rustidion e, tomando-o
delicadamente, pelo braço, disse:
MIRDAD: Levanta-te, meu Rustidion. Tu és também
imagem de Deus, e a imagem de Deus não se deve curvar
diante de sombra alguma. (E voltando-se para Shamadam)
Mostra-me o título da dívida.
Naronda: Shamadam, que havia um momento estava
furioso, para espanto de todos se tornou mais manso que
um cordeiro e humildemente passou ao Mestre o papel que
tinha na mão. O Mestre examinou com todo o cuidado o
documento, enquanto Shamadam o olhava calado, como
se estivesse sob a ação de um encantamento.
MIRDAD: Não era onzenário o fundador desta Arca? Por
acaso ele te legou dinheiro que devesse emprestar com
usura, ou terras para alugar a um preço exorbitante?
Deixou-te ele por herança o suor e o sangue de teu irmão,
ordenando-te que lançasses à prisão aqueles cujo suor
tivesses recolhido até não haver mais e cujo sangue tivesse
sugado até a última gota?
Uma arca, um altar e uma luz foi o que ele te deixou em
herança — nada mais. Uma arca, que é o seu corpo vivo;
um altar que é o seu destemido coração; uma luz, que é a
sua fé ardente. Estas coisas ele te ordenou que as
conservasses intactas e puras, num mundo que baila ao
som das flautas da Morte e se espoja no lamaçal da
iniqüidade, devido à sua falta de fé.
Para que os cuidados do corpo não vos distraíssem o
espírito, vos foi permitido viver de caridade dos fiéis. E
nunca, desde que a Arca foi lançada, houve falta de
caridade.
Mas ai! Esta caridade tu agora a transformaste em
maldição, para ti e para os caridosos, pois com as suas
doações, tu subjugas os doadores. Tu os enforcas com as
cordas que eles fiam para ti. Tu os desnudas das roupas
que teceram para ti. Tu os matas de fome pelo pão que
para ti assaram. Tu constróis prisões para ele com as
pedras que para ti eles cortaram e aparelharam. Para eles
tu fazes jugos e esquifes com a madeira que eles cortaram
para te aqueceres. Empresta-lhes com usura o seu próprio
suor e o seu próprio sangue, pois que é o dinheiro senão
suor e sangue do homem, cunhado em moedas com as
quais se acorrenta o próprio homem? Que é a riqueza
senão o suor e o sangue do homem, armazenado por
aqueles que suam e sangram o mínimo, para moer as
costas daqueles que suam e sangram o máximo?
Malditos! Mais uma vez malditos sejam aqueles que
queimam suas mentes e seus corações e assassinam seus
dias e suas noites para acumular riquezas, pois não sabem
o que estão acumulando!
O suor das prostitutas e dos ladrões; o suor dos
tuberculosos, dos leprosos e dos paralíticos; o suor dos
cegos, dos coxos e dos aleijados; o suor do arador e do seu
boi, dos carneiros e do pastor, do segador e do que faz a
colheita — de todos estes e de muitos mais — eis o que
armazena o acumulador de riquezas!
O sangue do órfão e do velhaco; do déspota e do mártir;
do perverso e do justo; do que rouba e do que é roubado;
do executor e do que é executado; o sangue dos
exploradores e trapaceiros e daqueles que são explorados e
ludibriados — o sangue de todos estes e de muitos mais,
eis o que armazenam os que acumulam riquezas!
Malditos! Sempre malditos sejam aqueles cuja riqueza e
cujo capital nos negócios é o suor e o sangue dos homens!
Suor e sangue será, finalmente, o seu preço. Terrível será
o preço e apavorante o ajuste de contas.
Emprestar, e emprestar a juros! Realmente é ingratidão,
excessivamente descarada, para que possa desculpar.
Que tens tu para emprestar? Não é a tua própria vida um
presente? Se Deus quisesse cobrar o juro pelo mais ínfimo
dos presentes que te deu, onde irias buscar com que pagálos?
Não é este mundo um tesouro comum, onde cada coisa e
cada homem deposita tudo que possui para a manutenção
de todos?
Por acaso a calhandra te o seu canto ou a fonte a água que
dela jorra? E o carvalho empresta a sua sombra, ou a
tamareira suas dulcíssimas tâmaras?
Empresta o carneiro a sua lã e a vaca o seu leite... a juros?
E as nuvens, vendem-te a chuva, ou o sol o seu calor e a
sua luz?
Que seria de tua vida sem estas coisas e milhares de
outras? E qual dentre vós pode dizer quem depositou o
máximo e quem confiou o mínimo, na tesouraria do
mundo?
Podes tu, Shamadam, calculara quais foram as
contribuições de Rustidion para a tesouraria da Arca?
Emprestas-lhe as suas próprias contribuições — talvez
uma parte ínfima das mesmas — , cobras-lhe juros
escorchantes, e agora queres fazê-lo apodrecer na prisão?!
Qual o juro que exiges de Rustidion? Não vês como o teu
empréstimo foi lucrativo?! Que melhor pagamento queres
do que um filho morto, uma vaca morta e uma esposa
paralítica?! Que melhores juros exigir do que os andrajos
que lhe cobrem o corpo curvado?!
Esfrega os olhos, Shamadam. Desperta, antes que te seja
exigido também que pagues as tuas dívidas com juros e,
não o podendo fazer, sejas mandado apodrecer na prisão.
O mesmo digo a todos vós, companheiros. Esfregai os
vossos olhos e despertai.
Dai quando puderdes e tudo que puderdes. Mas jamais
emprestai, senão tudo quanto tiverdes, inclusive a vossa
vida, se tornará um empréstimo, e um empréstimo
vencido. Sereis considerado insolventes e lançados à
prisão.
Naronda: O Mestre olhou então novamente para o
documento que tinha nas mãos e o fez em pedaços que
lançou ao vento. Voltando-se então para Himbal, que era o
tesoureiro, disse-lhe:
MIRDAD: Dá a Rustidon o necessário para comprar duas
vacas e cuidar de sua esposa e de si próprio, até o fim dos
seus dias.
E tu, Rustidion, vai em paz. Tua dívida está resgatada.
Toma cuidado para jamais te tornares credor, pois o débito
de quem empresta é muito mais pesado do que o daquele
que toma emprestado.
CAPÍTULO 17
Shamadam recorre ao suborno na sua luta contra Mirdad.
Naronda: Durante muitos dias o caso de Rustidion foi o
assunto predominante na Arca. Micayon, Micaster e
Zamora elogiavam o Mestre com veemência, dizendo
Zamora que ele detestava até olhar ou tocar dinheiro.
Bennoon e Abimar aprovaram e desaprovaram sem
entusiasmo. Quanto a Himbal, reprovava abertamente,
dizendo que o mundo jamais poderia passar sem dinheiro
e que a riqueza era a justa recompensa de Deus à
economia e à atividade, assim como a pobreza era o
evidente castigo de Deus para a indolência e o desperdício
e que até o fim dos tempos haverá credores e devedores
entre os homens.
Entrementes, Shamadam andava ocupadíssimo em
restaurar o seu prestígio como Superior.
Chamou-me, uma vez em particular para falar-me em sua
cela, onde me disse o seguinte:
— “Tu és o escriba e o historiador desta Arca e és filho de
um homem pobre. Teu pai não possui terras mas tem sete
filhos e a esposa, para os quais deve trabalhar e cuidar de
que não passem necessidade. Nada deves registrar deste
infeliz episódio, pois do contrário os que vierem depois se
rirão de Shamadam. Afasta-te desse réprobo Mirdad e
farei de teu pai um proprietário, enchendo-lhe os celeiros e
o cofre.”
Ao que respondi dizendo que Deus cuidaria de meu pai e
de sua família, muito melhor do jamais poderia Shamadam
fazê-lo. Quanto a Mirdad, eu o considerava meu Mestre e
libertador e preferia abandonar a vida a abandoná-lo.
E, com referência ao histórico da Arca, eu o faria
fielmente — e do melhor modo que pudesse.
Mais tarde, vim a saber que Shamadam fizera a mesma
oferta a cada um dos companheiros; com que resultado . . .
não poderia dizer. Era de se notar, porém, que Himbal já
não era tão constante no seu comparecimento ao Ninho da
Águia.
CAPÍTULO 18
Mirdad adivinha a morte do pai de Himbal e as
circunstâncias em que se dera.
O Mestre fala da morte.
O tempo é o maior embusteiro.
A roda do tempo, o seu aro e o seu eixo.
Naronda: Muita água já correra pelas montanhas abaixo e
fora levada para o mar, quando os companheiros, exceto
Himbal, mais uma vez se reuniram em volta do Mestre, no
Ninho da Águia.
O Mestre estava falando sobre a Vontade Universal.
Subitamente, porém, parou e disse:
MIRDAD: Himbal está em aflição; ele nos procuraria para
encontrar conforto, mas os seus pés estão muito
envergonhados, para que o possam trazer aqui. Vai buscálo,
Abimar.
Naronda: Abimar se foi e em pouco voltava com Himbal,
que soluçava e tremia, tendo no rosto uma expressão de
profunda infelicidade.
MIRDAD: Vem para perto de mim, Himbal.
Ah, Himbal, Himbal! Porque teu pai morreu, tu deixas a
tristeza roer o teu coração e tornas o sangue em lágrimas.
Que farás quando toda tua família morrer? Que farás
quando todos os pais e todas as mães e todas as irmãs e
irmãos deste mundo falecerem diante de ti, aos teus olhos?
Himbal: Ah, Mestre, meu faleceu de morte violenta. Um
touro que tinha comprado recentemente o chifrou na
barriga e partiu-lhe o crânio anteontem. Acabo de sabê-lo
por um mensageiro. Que desgraça a minha! Que desgraça
a minha!
MIRDAD: E ele morreu, ao que parece, quando a fortuna
deste mundo começava a lhe sorrir.
Himbal: Assim é, Mestre. É isso mesmo.
MIRDAD: E a sua sorte te causa maior sofrimento porque
o touro havia sido comprado com o dinheiro que tu lhe
enviaste.
Himbal: Assim é, Mestre. É isso mesmo. Ao que parece
vós sabeis tudo.
MIRDAD: Dinheiro era o preço de teu amor por Mirdad.
Naronda: Himbal nada mais pôde dizer: estava afogado
em lágrimas.
MIRDAD: Teu pai não está morto, Himbal! Nem estão
mortas ainda a sua forma e a sua sombra. Mas estão
mortos, verdadeiramente mortos, os teus sentidos para a
forma e a sombra alteradas de teu pai, pois há formas tão
tênues e delicadas, com sombras tão atenuadas que os
olhos grosseiros do homem não as podem divisar.
A sombra de um cedro na floresta não é a mesma que a de
um cedro que se tornou mastro de um navio, ou pilar de
um templo, ou cadafalso de um patíbulo. Nem é a sombra
daquele cedro a mesma ao sol e à luz das estrelas, ou da
névoa rosada do crepúsculo.
No entanto, aquele cedro, não importa quanto haja sido
transformado, vive como um cedro, embora os outros
cedros da floresta já não o reconheçam mais como irmão.
Pode o bicho da seda que está sobre a folha reconhecer a
irmã na crisálida que se encontra adormecida no casulo da
seda? Ou pode esta reconhecer sua irmã na borboleta da
seda que voa?
Pode o grão de trigo na terra reconhecer o seu parentesco
com a erva do trigo que cresce sobre a terra?
Podem os vapores no ar, ou nas águas no mar reconhecer
como irmãs ou irmãos os pingentes de gelo na caverna da
montanha?
Pode a Terra reconhecer como irmão o meteoro que cai
sobre ela das profundezas do Espaço?
Pode o carvalho ver-se a si mesmo na bolota?
Devido ao fato de teu pai estar agora em uma luz à qual os
teus olhos não estão acostumados e em uma forma que não
podes perceber, dizes que teu pai já não existe, mas o eu
material do Homem, não importa quanto haja sido
modificado e para onde tenha sido transportado, sempre
projeta uma sombra até que se haja dissolvido no Eu-
Divino do Homem.
Um pedaço de madeira, seja ele hoje um galho verde na
árvore ou uma cavilha na parede amanhã, continua a ser
madeira e a mudar de forma até que seja consumida pelo
fogo que há dentro dela. Do mesmo modo o Homem
continua a ser homem, quando vivo ou quando morto, até
que o Deus que há nele o consuma, o que quer dizer, “até
que ele compreenda a sua unidade com O Único”. Isso
porém não se cumpre no ápice de tempo de um piscar de
olhos que o homem gosta de chamar de uma vida inteira.
O Tempo todo é uma vida inteira.
Não há paradas e começos no Tempo. Nem há
caravansarás em que os viajantes possam parar para
refrescar-se e descansar.
O Tempo é uma continuidade que se sobrepõe a si mesmo.
A sua popa está ligada à sua proa. Nada termina e é posto
à margem no Tempo; nada começa nem termina.
O Tempo é uma roda criada pelos sentidos e pelos
sentidos lançada a girar no Espaço.
Vós sentis a estonteante mudança das Estações e acreditais
então, que tudo está preso nas garras da mudança. Mas vos
esqueçais de que o poder que dobra e desdobra as Estações
é eterno, único e sempre o mesmo.
Vós sentis as coisas crescerem e decaírem e,
irreverentemente, declarais que a ruína é o fim de tudo que
cresce. Mas esqueceis que o poder que faz as coisas
crescerem e decaírem — esse não cresce e nem decai.
Vós sentis a velocidade de vento em relação à da brisa e
dizeis que o vento é mais rápido. Mas apesar disso admitis
que o que move o vento e o que move a brisa é um e o
mesmo, e não corre com o vento nem vacila com a brisa.
Como sois crédulos! Como vos deixais enganar com os
truques que os vossos sentidos vos aplicam! Onde está a
vossa Imaginação? Somente com ela podereis ver que
todas as coisas, que vos deixam atônitos, não são mais do
que truques de prestidigitação.
Como pode o vento ser mais rápido do que a brisa?
Não é a brisa que dá origem ao vento? Não leva o vento a
brisa consigo?
Vós, andarilhos da Terra, por que medis as distâncias que
caminhais em passos e em léguas? Tanto faz irdes
perambulando vagarosamente como a galope — não estais
sendo carregados por espaços e regiões para onde a Terra
está sendo levada? Não é pois, o vosso passo igual ao
passo da Terra? Não é a Terra, por sua vez, transportada
por outros corpos celestes, sendo então a sua velocidade
igual a desses corpos?
Sim. A vagarosidade é a mãe da rapidez. A rapidez é a
transportadora da vagarosidade. E a vagarosidade e a
rapidez são inseparáveis, em qualquer ponto do Tempo e
do Espaço.
Como dizeis vós que o crescimento é crescimento e a
decadência é decadência e que um inimigo do outro? Já
alguma coisa cresceu, sem que o haja feito à custa daquilo
que decaiu? E já algo decaiu, que não fosse em benefício
do que cresce?
Não cresceis vós por uma decadência contínua? E não
entrais em decadência pelo contínuo crescimento?
Não são os mortos o subsolo dos vivos e os vivos o celeiro
dos mortos?
Se o crescimento é filho da decadência e a decadência
filha do crescimento; se a Vida é filha da Morte e a Morte
filha da Vida, então na verdade ambas são uma só em
todos os pontos do Tempo e do Espaço. E na verdade a
vossa alegria de viver e de crescer é tão estúpida quanto a
vossa dor de decair e morrer.
Como dizeis que só o Outono é a estação das uvas? Em
verdade vos digo que as uvas estão maduras também no
Inverno, quando não há mais do que um leve pulsar de
seiva, imperceptível, mas sonhando os seus sonhos de
videira; e também na Primavera, quando forma os seus
cachos de esmeralda; e também no Verão, quando os
cachos crescem e os bagos incham e os seus rostos se
tornam corados sob o ouro do Sol.
Se cada Estação traz em si as outras três, então na verdade
é, ao mesmo tempo, todas as Estações em todos os pontos
do Tempo e do Espaço.
Ai! . . . que o Tempo é o maior prestidigitador e os
homens os maiores papalvos.
Muito semelhante ao esquilo na sua roda é o Homem, que
tendo posto a roda do Tempo a girar, fica de tal modo
dominado por ela e levado pelo movimento, que já não
pode crer que ele é que a faz mover, nem “acha tempo”
para deter o giro do Tempo.
E tal como o gato que desgasta sua língua lambendo a
pedra de amolar, na ilusão de que o sangue que está
lambendo roreja da pedra, Homem lambe o seu próprio
sangue, derramando na roda do Tempo e mastiga sua
própria carne, dilacerada pelos raios do Tempo, na ilusão
de que sejam o sangue e a carne do Tempo.
A roda do Tempo gira no vácuo do Espaço. No seu aro
estão situadas todas as coisas perceptíveis pelos sentidos,
que nada podem perceber, senão no Tempo e no Espaço.
E assim as coisas continuam aparecendo e desaparecendo.
O que desaparece para um, em certo ponto do Tempo e do
Espaço, aparece para outro em outro ponto. O que pode
ser dia para um é noite para outro, dependendo do
“Quando” e do “Onde” do observador.
Uma só é a estrada da Vida e da Morte, ó monges, sobre o
aro da roda do Tempo, pois o movimento em círculo
jamais pode atingir o fim e jamais se desgasta. E todo
movimento no mundo é movimento circular.
Então o Homem jamais se libertará do círculo vicioso do
Tempo?
Sim, o Homem se libertará, pois ele é herdeiro da
Liberdade sagrada de Deus.
A roda do tempo gira, mas o seu eixo está sempre em
repouso.
Deus é o eixo da roda do Tempo. Conquanto tudo gire à
volta d’Ele, no Tempo e no Espaço, Ele é sempre sem
espaço e sem tempo. Conquanto tudo seja procedente de
sua Palavra, sua Palavra é tão sem tempo e sem espaço
como Ele.
No eixo está a paz. No aro a agitação. Onde quereis vós
estar?
Em verdade vos digo, escapai do aro do Tempo para o
eixo e vos poupareis da náusea do movimento. Deixai o
Tempo girar em volta de vós; porém não gireis vós com o
Tempo.
CAPÍTULO 19
Lógica e fé; negação do eu e afirmação do eu.
Como fazer parar a roda do tempo.
Chorando e rindo Bannoon: Perdoai-me, Mestre, mas a
vossa lógica me deixa confuso pela ilogicidade.
MIRDAD: Não me admira, Bennoon; tu foste chamado “o
juiz”. Hás de insistir sobre a lógica do caso antes de o
decidirdes. Tens sido juiz tanto tempo e ainda não
descobriste que a única utilidade da Lógica é libertar o
Homem da Lógica e levá-lo à Fé que conduz à
Compreensão?!
A Lógica é a imaturidade tecendo uma teia de aranha para
apanhar o mamute do conhecimento. Quando a Lógica
atinge a maioridade, ela se estrangula em suas próprias
redes e se transmuta na Fé, que é o conhecimento mais
profundo.
A Lógica é a muleta do aleijado; mas é uma carga para o
que tem os pés ligeiros, e maior carga ainda para aqueles
que tem asas.
A Lógica é a Fé na segunda infância. A Fé é a Lógica que
atingiu a maturidade. Quando a tua lógica atingir a
maturidade, Bennoon, como logo se dará, tu não mais
falarás em Lógica.
Bennoon: Para sair do aro da roda do Tempo e passar ao
eixo é necessário que neguemos a nós mesmos. Pode o
homem negar a sua própria existência?
MIRDAD: Para isso, realmente, terás que negar o eu, que
é um joguete nas mãos do Tempo, e assim afirmar o Ser,
que é imune às brincadeiras do Tempo.
Bennoon: Pode a negação de um ser constituir a afirmação
de outro?
MIRDAD: Sim, negar o eu é afirmar o Ser. Enquanto
aquele morre para mudar, este nasce para jamais mudar. A
maior parte dos homens vive para morrer. Felizes são os
que morrem para viver.
Bennoon: No entanto o homem ama a sua identidade.
Como pode ele mergulhar em Deus e ainda estar
consciente de sua própria identidade?
MIRDAD: É prejuízo para o regato perder-se no Mar e
estar assim consciente de sua identidade como Mar? Para
o Homem, perder a sua identidade em Deus é somente
perder a sua sombra e encontrar a essência sem sombra do
seu Ser.
Miscaster: Como pode o Homem, criatura do Tempo,
libertar-se das muletas do Tempo?
MIRDAD: Assim como a Morte te livrará da Morte e a
Vida te libertará da Vida, o Tempo te libertará do Tempo.
O Homem se cansará tanto das mudanças que tudo nele
ansiará e almejará apaixonadamente por aquilo que é mais
poderoso do que as mudanças. E é certo que se encontrará
a si mesmo.
Felizes os que almejam, pois estão já no limiar da
Liberdade. É a eles que busco; é para eles que prego. Não
vos busquei a vós; por que ouvi aquilo que almejáveis?
Mas desgraçados serão aqueles que se embalam nas voltas
do Tempo e nelas procuram sua liberdade e paz. Tão logo
sorriem para nascer e já principiam a chorar para morrer.
Tão logo se enchem, são imediatamente esvaziados. Mal
acabam de apanhar a pomba da paz e ela se transforma,
em suas mãos, no abutre da guerra. Quanto mais pensam
que sabem, menos em verdade conhecem. Quanto mais
avançam, mais na verdade retrocedem. Quanto mais alto
sobem, mais fundo caem.
Para estes, minhas palavras serão vagas e irritantes
murmurações; serão como orações no hospício ou como
tochas acesas diante dos cegos. Enquanto também eles não
ansiarem pela Liberdade, não terão seus ouvidos abertos
para as minhas palavras.
Himbal (chorando): Não só abristes os meus ouvidos,
Mestre, mas também o meu coração. Perdoai o Himbal
surdo e cego de ontem.
MIRDAD: Suprime as tuas lágrimas Himbal. Uma lágrima
jamais pode tornar-se um olho que busca horizontes, além
do Tempo e do Espaço.
Deixa que aqueles que se riem, quando os dedos ágeis do
Tempo lhes fazem cócegas, chorem quando a sua pele for
despedaçada, pelas unhas do próprio Tempo.
Deixa que aqueles que dançam e cantam à radiante
Mocidade, cambaleiem e gemam às rugas da Velhice.
Deixa que os foliões dos carnavais do Tempo cubram suas
cabeças com cinzas nos seus funerais.
Tu porém deves estar sempre sereno. No caleidoscópio
das mudanças, procura somente o que é imutável.
Nada há no Tempo, que valha uma lágrima. Nada há que
valha uma gargalhada. A face que ri e a que chora estão
ambas desfiguradas e contorcidas.
Queres evitar o sal das lágrimas? Evita, então, as
contorções do riso.
A lágrima, ao evaporar-se, torna-se escarninho. O riso
escarninho, quando condensado, torna-se uma lágrima.
Não seja volátil para o riso, nem condensável para a
tristeza . . . mas serenamente igual para ambos.
CAPÍTULO 20
Para onde iremos depois de morrermos.
Do arrependimento.
Micaster: Mestre, para onde iremos depois de morrermos?
MIRDAD: Onde estás agora, Micaster?
Micaster: no Ninho da Águia.
MIRDAD: Achas tu que este Ninho da Águia é bastante
para te conter? Pensas que esta Terra é o único lar do
Homem:
Os vossos corpos, conquanto circunscritos ao Tempo e ao
Espaço, foram retirados de tudo que está no Tempo e no
Espaço. Aquilo de vós que veio do Sol, vive no Sol.
Aquilo de vós que veio da Terra, vive na Terra. E assim
com todas as outras esferas e ínvias regiões espaciais entre
elas.
Só o tolo pensa que a única morada do Homem é a Terra e
que as miríades de corpos que flutuam no Espaço são
meros ornamentos da morada do Homem e distração para
os seus olhos.
A Estrela da Manhã, a Via Láctea, as Plêiades, não são
menos moradas para o Homem do que esta Terra. Cada
vez que elas enviam um raio para os seus olhos, e elevam
até elas. Cada vez que ele passa sob elas, as atrai para si.
Todas as coisas estão incorporadas no Homem, e o
Homem está, por sua vez, nelas incorporado. O Universo é
um corpo único. Comunga com a menor partícula dele e
estarás comungando com o todo.
E assim como morres continuamente enquanto vives,
assim viverás continuamente quando estiveres morto;
senão, neste corpo, em um corpo de outra forma. Mas
continuarás a viver em um corpo, até te dissolveres em
Deus; o que significa que terás vencido todas as
mudanças.
Micaster: Voltamos à Terra enquanto viajamos de
mudança em mudança?
MIRDAD: A lei do Tempo é a repetição. Aquilo que uma
vez ocorre no Tempo está fadado a ocorrer de novo e
tornar a ocorrer; os intervalos, no caso do Homem, podem
ser longos ou breves, dependendo do desejo de cada
homem e da vontade de repetir.
Quando passais deste ciclo conhecido como vida para o
ciclo conhecido como morte e levais convosco uma sede
que não foi satisfeita pela Terra e uma fome que não foi
saciada pelas suas paixões, então o magneto da Terra vos
atrairá novamente ao seu seio. E a Terra vos amamentará e
o Tempo vos desmamará de vida em vida e de morte em
morte, até que vos desmameis por vós mesmos, de uma
vez e para sempre, de acordo com a vossa própria vontade.
Abimar: Tem a Terra poder sobre vós também, Mestre?
Vós vos assemelhais a um de nós?
MIRDAD: Eu venho quando quero; e quando quero me
vou. Venho para libertar os moradores da Terra, de sua
ligação à Terra.
Micayon: Quero ser desligado da Terra de uma vez para
sempre. Como poderei fazê-lo, Mestre?
MIRDAD: Amando a Terra e todos os seus filhos. Quando
o Amor for o único saldo de tuas contas com a Terra,
então a Terra te dará quitação do teu débito.
Micayon: Mas Amor é ligação e ligação é aprisionamento.
MIRDAD: Não, o Amor é a única coisa que liberta da
prisão. Quando amas a tudo, a nada estás ligado.
Zamora: Pode alguém, pelo Amor, escapar à repetição das
suas transgressões contra o Amor e, desse modo, fazer
parar a roda do Tempo?
MIRDAD: Tu o podes conseguir pelo Arrependimento. A
maldição proferida por tua língua procurará outro pouso,
quando voltar para ti e encontrar a tua língua coberta de
bênçãos, proveniente do Amor. Assim, o Amor evitará que
aquela maldição se repita.
Um olhar lascivo procurará os olhos lascivos e, ao voltar,
encontrará, transbordantes de olhares lascivos de Amor, os
olhos que o haviam enviado. E assim o Amor evitará a
repetição daquele olhar lascivo.
Uma intenção maldosa emitida por um coração maldoso
procurará aninhar-se e, quando voltar, encontrará o mesmo
coração repleto de intenções provenientes de Amor. Assim
o Amor evitará que se repita aquela intenção maldosa.
Isso é Arrependimento.
O Tempo nada poderá repetir para ti senão Amor, quando
o Amor se tornar o teu único saldo. Quando algo se torna a
única coisa repetida em todo tempo e lugar, transforma-se
em constância que enche todo Tempo e todo Espaço, e
assim um e outro são aniquilados.
Himbal: Ainda há uma coisa que perturba meu coração e
anuvia a minha compreensão, Mestre. Por que meu pai
morreu desta morte e não de outra?
CAPÍTULO 21
A sagrada vontade total.
Porque as coisas ocorrem de certa forma, e quando isso se
dá.
MIRDAD: É estranho que vós, filhos do Tempo e do
Espaço, não percebais que o Tempo é a memória universal
inscrita nos tabletes do Espaço.
Se vós, limitados como sois pelos sentidos, podeis
lembrar-vos de alguma coisa ocorrida entre o nascimento e
a morte, quanto o poderá o Tempo, que já era antes de
nascerdes e que durará infinitamente após a vossa morte?
Dir-vos-ei que o Tempo lembra-se de tudo — não só
daquilo de que tendes vívidas recordações, como também
do que passou inteiramente despercebido.
Isso porque não há esquecimento no Tempo; não, jamais o
Tempo esquece o mais leve movimento, respiração ou
capricho. E tudo o que é guardado na memória do Tempo,
fica profundamente gravado sobre as coisas do Espaço.
A própria terra que pisais, o próprio ar que respirais, as
próprias casas em que morais, poderiam facilmente
revelar-vos os mínimos pormenores do registro de vossas
vidas — passada, presente e do porvir — tivésseis vós a
capacidade de ler e a perspicácia de entender o sentido.
Na vida, como na morte; na Terra ou além da Terra,
jamais estareis sós, mas na constante companhia de seres e
coisas que participam de vossa vida e de vossa morte,
assim como vós participais da vida e da morte deles.
Assim como participais deles, eles participam de vós;
assim como os buscais, assim eles vos buscam.
O Homem tem sua conta com todas as coisas e estas têm
sua conta com o Homem. Esse intercâmbio segue sem
interrupção. A memória do Homem é um mau guardalivros;
não assim, porém, a perfeita memória do Tempo,
que conserva sempre em dia as contas de sua relação com
os dos seus contmporâneos e outros seres do Universo e os
força a acertar suas contas num piscar de olhos, vida após
vida, morte após morte.
O raio jamais feriria a cada se a casa não o atraísse. A casa
é tão responsável pela sua ruína quanto o raio.
Um touro jamais chifra um homem se o homem não o
convidar a chifrá-lo. E, na verdade, aquele homem deve
responder mais pelo seu sangue do que o boi. O
assassinado afia o punhal do assassino e ambos desferem o
golpe fatal. O roubado dirige os movimentos do ladrão e
ambos cometem o roubo.
Sim, o Homem convida as suas próprias calamidades e
depois protesta contra os hóspedes importunos por se
haver esquecido quando e como escreveu e enviou os
convites. O Tempo, no entanto, jamais esquece; e o
Tempo, a tempo e horas, entrega o convite no endereço
certo; e o Tempo conduz cada convidado, à casa do
anfitrião.
E em verdade vos digo, jamais protesteis contra um
hóspede, para que ele não se vingue, demorando-se muito
tempo ou tornando as suas visitas mais freqüentes do que
seria normal.
Sede bondosos e hospitaleiros para com todos os vossos
hóspedes, seja qual for o seu procedimento ou o seu
comportamento; pois, na realidade, são somente vossos
credores. Daí, aos mais importunos, ainda mais do que
deveis, para que se vão gratos e satisfeitos e para que, se
voltarem a visitar-vos, o façam como amigos e não como
credores.
Tratai cada hóspede como hóspede de honra, a fim de que,
captando-lhes a confiança, possais descobrir os motivos
ocultos de sua visita.
Aceitai a desventura como se fosse ventura, pois uma
desventura, uma vez compreendida, logo se transforma em
ventura. Por outro lado, a ventura mal compreendida,
muito em breve, se torna desventura.
Vós escolheis o vosso nascimento e a vossa morte, a hora,
o local e o modo, não obstante a vossa memória
caprichosa, que não é mais do que um emaranhado de
falsidades, cheia de buracos e de brechas enormes.
O pretenso sábio declara que os homens não têm qualquer
influência em seu nascimento e morte. O indolente que
olha de esguelha para o Tempo e o Espaço, logo afirma
que a maior parte do que sucede no Tempo e no Espaço é
acidental. Cuidado com os seus conceitos e as suas
ilusões, meus Companheiros.
Nada existe no Tempo e no Espaço que seja acidental.
Todas as coisas são ordenadas pela Vontade Total que em
nada erra e nada esquece.
Assim como as gotas de chuva se reúnem nas fontes; e as
fontes fluem para se transformarem em riachos, e os
riachos em ribeirões; assim como os ribeirões se oferecem
como afluentes dos rios maiores e estes, por sua vez,
levam as suas águas ao mar, e o mar se junta ao Grande
Oceano — assim cada vontade de cada criatura, inanimada
ou animada, flui como tributária da Vontade Total.
Em verdade vos digo, que tudo tem vontade. Mesmo a
pedra, aparentemente tão surda e muda e sem vida, não é
isenta de vontade. Se assim fosse, ela em nada influiria e
nada a afetaria. A sua consciência de querer e de ser
poderá diferir da do homem, em grau, porém, não em
substância.
De quanto, com referência à vida de um só dia, podereis
afirmar que sois conscientes? De uma parte insignificante,
na realidade.
Se vós, dotados de cérebro, memória e meios de registrar
emoções e pensamentos, ainda sois inconscientes da maior
parte da vida de um único dia, porque vos admirais de que
uma pedra seja inconsciente de sua vida e sua vontade?
E assim como viveis e vos moveis, quase inconscientes de
que estais vivendo e vos movendo, assim também quereis,
sem terdes consciência de que estais querendo. Mas a
Vontade Total é consciente da vossa inconsciência e da de
toda criatura no Universo.
Ao se redistribuir a si mesma, como sói suceder a todo
instante do Tempo, e em todos os pontos do Espaço, a
Vontade Total dá a cada homem e a cada coisa aquilo de
que ele ou ela desejaram, nem mais nem menos, quer o
tenham querido conscientemente ou não. Os homens,
porém, não o sabendo, surpreendem-se freqüentemente
com o que lhes toca da sacola da Vontade Total, que tudo
contém. E os homens protestam, abatidos, desanimados e
culpam os caprichos do Destino.
Não é o Destino, ó monges, que é caprichoso; pois Destino
não é mais que outro nome da Vontade Total. É a vontade
do Homem que ainda é muito caprichosa, muito instável e
muito incerta no seu curso; hoje corre para o oriente e
amanhã para o ocidente; aqui marca isto como sendo bom
e ali decreta que é mau; agora aceita um homem como
amigo e mais tarde o combate como inimigo.
Vossa vontade não deve ser caprichosa, meus
Companheiros. Lembrai-vos de que todas as nossas
relações com as coisas e os homens são determinadas pelo
que quereis deles e pelo que eles querem de vós.
Portanto, já antes vos disse e agora torno a dizer: tomai
cuidado de como respirais, de como falais, do que
desejais, do que pensais e fazeis. Porque a vossa vontade
está escondida em cada respiração, em cada palavra, em
cada desejo, em cada pensamento e em cada ação. E o que
está oculto para vós, será sempre manifesto à Vontade
Total.
Não queirais obter de nenhum homem um prazer que para
ele seja uma dor, pois, se o fizerdes, o vosso prazer vos
doerá mais do que uma dor.
Nem queirais obter de coisa alguma um bem que para ela
seja um mal, pois, se o fizerdes, estareis querendo um mal
também para vós.
Mas querei de todos os homens e de todas e de todas as
coisas o seu amor; pois somente com ele serão levantados
vossos véus e a Compreensão nascerá em vosso coração,
iniciando-se, assim, a vossa vontade, nos profundos
mistérios da Vontade Total.
Enquanto não chegardes a ser conscientes de todas as
coisas, não podereis ser conscientes da vontade delas em
vós, nem de vossa vontade nelas.
Enquanto não fordes conscientes de vossa vontade
em todas as coisas, e delas em vossa vontade, não podereis
conhecer os mistérios da Vontade Total.
E enquanto não conhecerdes os mistérios da Vontade
Total, não deveis estabelecer a vossa contra ela, pois
certamente sereis vencidos. Saireis de cada encontro
feridos e embriagados de fel; e buscareis vingar-vos,
somente para acrescentardes mais ferimentos aos antigos e
fazer transbordar a vossa taça de fel.
Em verdade vos digo, aceitai a Vontade Total se quereis
transformar a derrota em vitória. Aceitai, sem murmurar,
todas as coisas que, de sua misteriosa sacola, caírem sobre
vós; aceitai com gratidão, convencidos de que são a vossa
parte justa e perfeita, da Vontade Total. Aceitai-as com
vontade de compreender o seu valor e o seu significado.
E quando conseguirdes compreender os caminhos ocultos
de vossa própria vontade, tereis compreendido a Vontade
Total.
Aceitai o que não sabeis e talvez isso vos permita vir a
saber. Voltai-vos contra o que ignorais e continuareis a ter
ante vós um enigma irritante.
Deixai que a vossa vontade seja serva da Vontade Total
até que a Compreensão torne a Vontade Total serva da
vossa vontade.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
CAPÍTULO 22
Mirdad alivia Zamora de seu segredo e fala do homem e
da mulher, do casamento e do celibato daquele que se
libertou.
MIRDAD: Naronda, minha fiel memória! Que te dizem
estes lírios?
Naronda: Nada que eu possa ouvir, meu Mestre.
MIRDAD: Eu os ouço dizer: “Amamos Naronda e com
satisfação lhe oferecemos nossas fragrantes almas como
prova de nosso amor.” Que te dizem as águas deste
tanque?
Naronda: Nada que eu possa ouvir, meu Mestre.
MIRDAD: Eu as ouço dizer: “Amamos Naronda, por isso
saciamos-lhe a sede e a sede dos seus amados lírios.”
Naronda, meu olho vigilante! Que te diz este dia, com
todas as coisas que ele, carinhosamente, embala em seus
braços ensolarados?
Naronda: Nada que eu possa ouvir, meu Mestre.
MIRDAD: Eu o ouço dizer: “Eu amo Naronda, por isso
embalo, carinhosamente, em meus braços ensolarados,
juntamente com o resto de minha amada família.”
Com todas estas coisas para amar e ser por elas amado,
não tem Naronda a vida bastante cheia, sem lugar para que
sonhos vãos e pensamentos fúteis nela façam ninho e se
ponham a chocar?
Em verdade vos digo, que o Homem é o bem amado do
Universo. Todas as coisas se alegram em mimá-lo.
Mas raro são os homens que não ficam enfatuados com
esses mimos e mais raros ainda aqueles que não mordem a
mão que os acaricia.
Para quem não é enfatuado, até a picada da serpente é um
beijo de amor. Mas para o enfatuado, até um beijo de amor
é picada de serpente. Não é assim, Zamora?
Naronda: Assim ia o Mestre dizendo, enquanto ele,
Zamora e eu, numa tarde ensolarada, regávamos alguns
canteiros de flores no jardim da Arca. Zamora, que
durante o tempo todo se conservava distraído, abatido e
deprimido, foi tomado de improviso pela pergunta do
Mestre.
Zamora: O que o Mestre diz é verdade e isso deve ser
verdadeiro.
MIRDAD: Não é verdade no teu caso, Zamora? Não foste
tu envenenado por muitos beijos de amor? Não estás agora
torturado pela recordação do teu beijo envenenado?
Zamora (atirando-se aos pés do Mestre, enquanto as
lágrimas lhe brotavam dos olhos): Oh, Mestre! Que vã
infantilidade a minha, ou de qualquer homem, em tentar
esconder dos vossos olhos, mesmo nas profundezas do
coração, um segredo!
MIRDAD (enquanto fazia Zamora levantar-se): Como é
infantil e vão tentar escondê-lo até mesmo destes lírios!
Zamora: Sei que meu coração ainda não é puro, porque os
sonhos que tive esta noite foram impuros.
Hoje vou esvaziar meu coração. Vou pô-lo nu diante de
vós, meu Mestre; diante de Naronda; diante destes lírios e
das minhocas que rastejam pelas suas raízes. Preciso depor
a carga de um segredo que me pesa na alma. Que esta
brisa a carregue para todas as criaturas deste mundo.
Na minha mocidade amei uma jovem. Era mais linda que
a estrela da manhã. Seu nome era mais doce à minha
língua do que o sono às minhas pálpebras. Quando nos
falastes da oração e da corrente sangüínea eu fui o
primeiro a beber a substância curativa de vossas palavras,
pois o amor de Hoglah — era esse o seu nome — dirigia o
meu sangue, e bem sei o que pode fazer uma sangue assim
dirigido.
Com o amor de Hoglah a eternidade era minha. Eu a usava
como um anel de casamento. E a própria Morte eu vestia
como se fosse uma cota de malha. Eu me sentia mais idoso
do que todos os ontens e mais jovem do que o último
amanhã que estiver para nascer. Meus braços sustentavam
os céus e meus pés impeliam a terra. No meu coração
brilhavam inúmeros sóis . . .
Mas Hoglah morreu, e Zamora, a fênix flamejante,
transformou-se em um monte de cinzas frias e sem vida,
das quais nenhuma fênix renasceu. Zamora, o leão
destemido, tornou-se um coelho assustadiço. Zamora, a
coluna do céu, tornou-se as miseráveis ruínas de um
naufrágio, encalhadas em uma lagoa da águas pútridas.
Procurei salvar o que pude de Zamora e parti para esta
Arca, esperando enterrar-me vivo nas suas recordações e
sombras diluvianas. Tive a sorte de chegar aqui,
exatamente, quando um companheiro havia partido deste
mundo e fui admitido.
Durante quinze anos, os companheiros desta Arca viram e
ouviram Zamora, mas dos segredos de Zamora, jamais
souberam ou ouviram. Pode ser que as velhas paredes e os
sombrios corredores da Arca não o ignorem. Pode ser que
as árvores, as flores e os pássaros deste jardim, dele
saibam algo. Mas, certamente, as cordas da minha harpa
vos poderão contar muito mais, ó Mestre, a respeito da
minha Hoglah, do que eu próprio.
Exatamente quando as vossas palavras principiam a
aquecer e agitar as cinzas de Zamora e percebo o
nascimento de um novo Zamora, Hoglah visita-me em
sonhos, faz-me ferver o sangue e atira-me aos sombrios
despenhadeiros da realidade atual — uma tocha queimada,
um êxtase nascido morto, um monte de cinzas frias.
Ah! Hoglah, Hoglah!
Perdoa-me, Mestre. Não posso reter as lágrimas. Que mais
pode a carne ser, senão carne? Tende piedade da minha
carne. Tende piedade de Zamora.
MIRDAD: A própria piedade necessita de piedade.
Mirdad não a tem. Mas Amor, Mirdad tem em abundância,
por todas as coisas, mesmo pela carne; e ainda mais pelo
Espírito, que toma a forma grosseira da carne unicamente
para nela suprir a sua própria falta de forma. E o amor de
Mirdad levantará Zamora de suas cinzas e fará dele “o que
se libertou”. “O que se libertou” — eis o que eu prego —
o Homem unificado e mestre de si mesmo. O homem, que
está aprisionado ao amor da mulher, e a mulher, que está
aprisionada ao amor do homem, são ambos incapazes de
obter a preciosa coroa da Liberdade. Mas o homem e a
mulher tornados um só pelo Amor, inseparáveis e
indistinguíveis, estão realmente qualificados para o
prêmio.
Não é Amor o amor que subjuga o amante.
Não é Amor o amor que se alimenta de carne e sangue.
Não é Amor o amor que atrai a mulher para o homem,
somente para porem no mundo mais homens e mais
mulheres e, assim, perpetuarem a sua escravidão.
Eu prego “O que se libertou” — o Homem-Fênix, que é
demasiado livre para ser um macho e muito sublimado
para ser uma fêmea.
Assim como nas esferas mais densas da Vida, o macho e a
fêmea são um, assim são eles um nas esferas menos
densas da Vida. O intervalo entre as duas não é mais do
que um segmento na eternidade, dominado pela ilusão da
Dualidade. Aqueles que não podem ver, nem para diante
nem para trás, julgam que este segmento da eternidade é a
própria Eternidade. Agarram-se à ilusão da Dualidade,
como se fosse esta o núcleo e a essência da própria Vida,
ignorando que a regra da Vida é a Unicidade.
A Dualidade é uma etapa no Tempo. Como procede da
Unidade, à Unidade se dirige. Quanto mais rapidamente
atravessardes esta etapa, mais cedo abraçareis a vossa
liberdade.
E que são o homem e a mulher senão o Homem Uno,
inconsciente de sua unidade, dividido em dois para sorver
o fel da Dualidade, para que almeje o néctar da Unidade e
para que , almejando-o, procure com ânsia e, procurandoo,
o encontre e o possua, consciente de que ele ultrapassa a
liberdade?
Deixai que cavalo relinche para a égua e a gazela chame
pelo cervo. A própria Natureza os estimula a isso e os
abençoa e aprova, pois não são conscientes de nenhum
destino superior, além do da auto-reprodução.
Deixai o homem e a mulher que ainda não estão muito
longe do cavalo e da égua, do cervo e da gazela,
buscarem-se mutuamente nas trevas da separação da
carne. Deixai-os misturar a licenciosidade da alcova, com
a licença do nó matrimonial. Deixai-os alegrarem-se com
a fertilidade dos corpos e a fecundidade do ventre. Deixaios
propagar a espécie. A própria Natureza será oficiante de
suas núpcias e parteira; a própria Natureza preparará para
eles leitos de rosas, sem esquecer-se dos espinhos.
Mas os homens e mulheres precisam realizar a sua união
ainda enquanto estiverem na carne; não pela comunhão da
carne, mas pela Vontade de se libertarem da carne e de
todos os impedimentos que esta coloca em seu caminho
para a perfeita Unidade e a Sagrada Compreensão.
Freqüentemente ouvis os homens falarem em “natureza
humana”, como se esta fosse um elemento rígido, bem
medido, bem definido, exaustivamente explorado e
firmemente escorado, por todos os lados, por algo que eles
denominam Sexo.
A natureza humana é satisfazer as paixões do sexo. Só
tentar pôr um freio aos seus acessos turbulentos ou
empregar meios para superar o sexo é, decididamente, ir
contra a natureza humana e sofrer as conseqüências.
Assim dizem os homens. Não deis ouvidos a essa
tagarelice.
Muito complexo é o Homem e imponderável a sua
natureza. Mui variados são os seus talentos e inexaurível a
sua energia. Cuidado com aqueles que o querem encerrar
entre muros.
A carne, sem dúvida, impõe ao Homem um pesado tributo.
Mas ele o paga somente durante um certo tempo. Quem
dentre vós quereria ser vassalo da carne por toda a
eternidade? Qual o vassalo que não sonha em sacudir dos
ombros o jugo do príncipe que o oprime e, assim, libertarse
de pagar o tributo?
O Homem não nasceu para ser vassalo, nem mesmo de sua
natureza humana. E o Homem está sempre almejando
libertar-se de toda e qualquer vassalagem. E certamente
possuirá a Liberdade.
Que são os elos do sangue para aquele que deseja libertarse?
Uma cadeia que terá de ser quebrada com uma
vontade.
“O que se libertou” sente o seu sangue relacionado com
todo sangue. Conseqüentemente, não está preso a nenhum.
Deixai a propagação da raça para aqueles que nada
almejam. Os que almejam têm outra raça para propagar: a
raça dos que se libertam.
A raça dos que se libertam não descende do ventre. Ao
contrário, ascende de corações celibatários cujo sangue é
dirigido por uma vontade inflexível de se libertar.
Sei que vós, e muitos como nós, pelo mundo afora, têm
feito votos de celibato. No entanto, longe estais de ser
celibatários, como testifica o sonho de Zamora na noite
passada.
Não é celibatário aquele que usa trajes eclesiásticos e que
se encerra por trás de grossas paredes e reforçados portões
de ferro. Muitos frades e muitas freiras são mais lascivos
do que o mais lascivo dos homens e a mais lasciva das
mulheres, embora possam jurar — sem mentir — que
jamais hajam tido contato com outra carne. Celibatários
são aqueles cujos corações e mentes são celibatários, quer
estejam encerrados em mosteiros ou vagueiam nos
mercados.
Venerai, meus Companheiros, a Mulher e santificai-a. Não
no papel de mãe da raça, nem como esposa ou amante,
porém como gêmea do homem e sua sócia, cota por cota,
na longa fadiga e sofrimento da vida dualística, pois sem
ela não pode o homem atravessar o segmento da
Dualidade. Somente nela ele encontrará sua unidade, e
nele encontrará ela sua libertação da Dualidade. E os
gêmeos serão a seu tempo reunidos em um, “O que se
libertou”, que não é nem masculino nem feminino: o
Homem Perfeito.
“O que se libertou”: eis o que prego; o Homem unificado e
mestre de si mesmo. E cada um de vós será um “dos que
se libertaram”, antes que Mirdad se retire dentre vós.
Zamora: Entristece-me o coração ouvir-vos falar em nos
deixar. Se chegar o dia em que vos procurarmos e não vos
acharmos, Zamora porá fim ao seu alento.
MIRDAD: Tu podes querer muitas coisas Zamora —
podes querer todas as coisas. Mas há uma coisa que não
podes querer: por fim à tua vontade, que é a vontade da
Vida, que é a Vontade Total; pois a Vida, que é Ser,
jamais pode querer o seu não-ser; nem pode o não-ser ter
vontade. Não! Nem mesmo Deus pode acabar com
Zamora.
Quando a eu deixar-vos, o dia certamente chegará em que
me procurareis na carne e não me achareis, pois tenho
trabalho a fazer em outros lugares, além do que estou
fazendo nesta Terra. E em nenhum lugar deixo meu
trabalho por fazer. Alegrai-vos, portanto. Mirdad não vos
deixará, enquanto não houver feito de vós os que se
libertaram — homens unificados e perfeitos mestres de si
mesmos.
Quando fordes mestres de vós próprios e houverdes
atingido a Unidade, então encontrareis Mirdad, como um
constante morador em vossos corações e o seu nome
jamais se oxidará em vossa memória.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
CAPÍTULO 23
Mirdad cura Sim-Sim e fala acerca da velhice.
Naronda: Sim-Sim, a mais velha vaca dos estábulos da
Arca, havia cinco dias que estava doente e não comia nem
bebia, quando Shamadam mandou que viesse o magarefe,
dizendo que seria mais prudente matar a vaca e ter lucro
com a venda da carne e do couro, do que deixá-la morrer e
ter um prejuízo total.
Quando o Mestre soube disso, ficou extremamente
pensativo e, imediatamente, se dirigiu a toda pressa para o
estábulo, indo diretamente à divisão em que estava Sim-
Sim. Os Sete o acompanharam. Sim-Sim estava triste e
quase imóvel, sua cabeça abaixada, os olhos semicerrados,
os pêlos arrepiados e sem brilho. Só de quando em
quando, movia uma orelha, para espantar alguma mosca
impertinente. Seu grande úbere pendia vazio e murcho,
entre suas pernas; pois à Sim-Sim, haviam sido negadas as
doces preocupações da maternidade, no fim de sua longa e
útil vida. Seus ossos dos quadris apareciam, sob a pele,
feios e tristes, como duas lápides sepulcrais. Suas costelas
e vértebras poderiam facilmente ser contadas. Sua cauda
longa e fina, com um tufo de pêlos na ponta, pendia
imóvel e reta.
O Mestre aproximou-se do animal doente e começou a dar
leves pancadinhas na sua cabeça, entre os chifres e os
olhos e debaixo do queixo. De quando em quando,
passava a mão pelas costas e pelo ventre do animal,
falando-lhe durante todo esse tempo, como falaria a um
ente humano.
MIRDAD: Onde está o alimento para ruminares, minha
generosa Sim-Sim? Sim-Sim já deu tanto que não lhe
sobrou nem um pouco de alimento para ruminar. E Sim-
Sim ainda tem muito para dar. Seu leite, cor de neve, ainda
hoje corre, vermelho, nas suas veias. Seus fortes novilhos
estão puxando os arados em nossos campos e nos
ajudando a alimentar muitas bocas famintas. Suas
graciosas novilhas enchem os nossos pastos com seus
bezerros. Até mesmo o seu esterco fornece às nossa mesa
suculentas verduras de nossa horta e apetitosos frutos de
nosso pomar.
Pelas ribanceiras ainda soa e ressoa o eco do mavioso
mugido de Sim-Sim. Nossas fontes ainda refletem o seu
belo e amável rosto. Nosso solo ainda guarda com ciúme
os inapagáveis rastos de seus cascos.
Nosso capim sente-se alegre em alimentar Sim-Sim.
Nosso sol tem prazer em acariciá-la. Nossas brisas
sentem-se felizes sobre o seu pêlo macio e brilhante.
Mirdad agradece a oportunidade de a conduzir pelo
deserto da ancianidade e ser o seu guia para outros pastos
e para a terra de outros sóis e outras brisas.
Muito tem Sim-Sim dado e muito tem tomado; muito mais
ainda tem Sim-Sim para dar e para tomar.
Miscaster: Pode Sim-Sim entender as vossas palavras,
para estardes a falar-lhe, como se ela tivesse entendimento
humano?
MIRDAD: Não são as palavras que valem, bom Miscaster,
e sim a vibração que há nas palavras. E a isso até uma fera
é susceptível. Além disso, vejo uma mulher, olhando para
mim, pelos olhos de Sim-Sim.
Miscaster: De que vale falar assim à velha Sim-Sim, que
está terminando sua vida? Tendes esperança de frear a
devastação feita pelo tempo e dilatar a vida de Sim-Sim?
MIRDAD: Terrível carga é a Velhice, tanto para o homem
como para os animais. E os homens dobram o peso dessa
carga pela sua cruel negligência. Para com uma criança
recém-nascida se desfazem em cuidados e afeição, mas
para um homem ou mulher curvados ao peso dos anos,
reservam a sua indiferença, mais do que o seu cuidado;
seu aborrecimento, mais do que sua simpatia. Tão
impacientes são em ver um recém-nascido crescer e
tornar-se adulto, como em ver uma pessoa idosa ser
engolida pela cova.
Os muito jovens e os muito velhos são ambos incapazes de
cuidar de si, mas a incapacidade das crianças atrai o
amoroso sacrifício e auxílio de todos, enquanto que a
incapacidade dos velhos só desperta o auxílio
resmunguento de alguns. E, na verdade, os velhos
merecem mais simpatia do que as crianças.
Quando a palavra tem que bater fortemente e por muito
tempo para penetrar num ouvido, que já foi sensível e
alerta ao mais leve sussurro; quando os olhos que já foram
límpidos se tornam um salão de dança para as mais
estranhas manchas e sombras; quando o pé, que parecia
dotado de asas, se torna um bloco de chumbo e a mão, que
moldava a vida, se torna um molde quebrado; quando o
joelho parece não ter junta e a cabeça é um títere preso ao
pescoço; quando a mó do moinho está gasta e o próprio
moinho é uma tenebrosa caverna; quando o levantar-se é
suar com receio de cair e o sentar-se é a dolorosa dúvida
quanto ao levantar-se de novo; quando comer e beber é
recear as conseqüências de ter comido e ter beido, e
quando não comer e não beber é ser presa da odiosa
Morte; sim, quando a Velhice desce sobre uma pessoa,
então é chegada a hora, meus companheiros, de
emprestarmos a ela, ouvidos e olhos e de dar-lhe mãos e
pés e amparar com o nosso amor as forças que a
abandonam, para fazê-la sentir que ela não é, de modo
algum, menos amada pela Vida nos dias de sua decadência
do que o foi nos dias em que era uma criança que crescia,
ou um jovem a desenvolver-se.
Quatro vintenas de anos podem não ser mais do um abrir e
fechar de olhos em relação à eternidade. Mas para uma
pessoa que se semeou durante quatro vintenas de anos, é
muito mais do que um piscar de olhos. Ela é o alimento
para todos aqueles que colhem a sua vida. E qual a vida
que não é colhida por todos?
Não estais vós colhendo, neste mesmo instante, a vida de
todos os homens e mulheres que já caminharam por esta
Terra? Que é o vosso falar senão a colheita do falar deles?
Que são os vossos pensamentos senão a recoleta dos seus
pensamentos? Vossas próprias roupas e casas, vosso
alimento, vossos implementos, vossas leis, vossas
tradições e convenções não são elas as roupas, as casas, o
alimento, os implementos, as leis, as tradições e as
convenções dos que aqui estiverem e se foram embora
antes?
Nenhuma coisa colheis uma vez só, mas todas elas colheis
todas as vezes. Vós sois os semeadores, a colheita, os
ceifeiros, o campo e a eira. Se a vossa colheita é pouca,
olhai para a semente que semeastes em outros e a que
permitistes que eles semeassem em vós. Olhai também
para o segador com sua foice e para a eira.
Uma pessoa idosa, cuja vida vós ceifastes e pusestes nos
silos, certamente merece o vosso maior cuidado. Se
amargardes com a vossa indiferença os seus anos, que
ainda são ricos em coisas para serem colhidas, aquilo que
já colhestes e guardastes e o que ainda possais colher,
amargará em vossa boca. O mesmo se pode dizer de um
animal que envelheceu.
Não é honesto aproveitar a colheita e depois amaldiçoar o
semeador e o ceifeiro.
Sede honestos para com as pessoas de todas as raças e
climas, meus companheiros. Elas são o alimento para a
vossa jornada em direção a Deus. Sede, principalmente,
bondosos para com as pessoas de idade, pois a vossa falta
de bondade pode estragar o alimento e não conseguireis
chegar ao término da viagem.
Sede bondosos para com os animais de toda espécie e
idade. Eles são vossos auxiliares mudos, mas fiéis, no
longo e árduo preparar para a jornada. Mas sede
especialmente bondosos para os animais idosos, para que,
devido à dureza de vossos corações, sua fidelidade não se
transforme em traição e seu auxílio não passe a ser um
estorvo.
É uma odiosa ingratidão deliciar-se com o leite de Sim-
Sim e quando ela já não o pode mais produzir, entregar a
sua garganta à faca do magarefe.
Naronda: Mal havia o Mestre acabado de pronunciar essas
palavras e eis que chegaram Shamadam e o magarefe. Este
foi diretamente a Sim-Sim. Mal a viu e já bradou em tom
zombeteiro: “Como ousais dizer que esta vaca está doente
e morrendo?! Ela está mais sadia do que eu; a diferença é
que ela está fraca de fome e eu não. Dai-lhe de comer”.
E grande foi o nosso espanto quando, ao olharmos para
Sim-Sim, a vimos ruminando. Até o coração de
Shamadam se enterneceu e ordenou que lavassem, para
Sim-Sim, as mais deliciosas ervas. E Sim-Sim as comeu,
com satisfação.
CAPÍTULO 24
Não é correto matar para comer?
Quando Shamadam e o magarefe se haviam retirado,
Micayon perguntou ao Mestre:
Micayon: Não é correto, Mestre, matar para comer?
MIRDAD: Alimentar-se da Morte é tornar-se alimento da
Morte. Viver das dores alheias é tornar-se presa da dor.
Assim o decretou a Vontade Total. Toma conhecimento
disto e escolhe o que hás de fazer Micayon.
Micayon: Se eu pudesse escolher, escolheria viver como a
fênix, do aroma das coisas, não de sua carne.
MIRDAD: Em verdade uma excelente escolha. Crê,
Micayon, que dia virá em que os homens viverão do
aroma das coisas, que é o seu espírito, e não de sua carne e
sangue. E esse dia não está longe para aqueles que
almejam.
Os que almejam sabem que a vida da carne nada mais é do
que uma ponte para a Vida fora da carne.
Os que almejam sabem que os sentidos grosseiros e
inadequados não são mais do que orifícios pelos quais se
espia para o mundo dos sentidos, infinitamente apurados e
adequados.
Os que almejam sabem que toda carne que rasguem, mais
cedo ou mais tarde terão que restaurar com sua própria
carne; e todo osso que triturem terão que reconstruir com
os seus próprios ossos; e cada gota de sangue que
derramem terão que repor com o seu próprio sangue, pois
essa é a lei da carne.
E os que almejam se libertarão da escravidão a esta lei.
Por isso, reduzem as suas necessidades corporais ao mais
baixo limite, reduzindo assim, o seu débito à carne — o
qual é, em verdade, um débito à Dor e à Morte.
O que almeja é inibido pela sua própria vontade e anseio;
ao passo que o que não almeja espera que os outros o
proíbam. Uma infinidade de coisas que são corretas para o
que não almeja, são consideradas, pelo que almeja, como
incorretas para ele.
Enquanto o que não almeja procura mais e mais coisas
com que possa encher os seus bolsos e seu ventre, o que
almeja segue o seu caminho sem ter bolso e com o ventre
limpo do sangue e das convulsões de qualquer criatura.
O que aquele que não almeja ganha — ou pensa ganhar —
no fim aquele que almeja ganha na leveza de espírito e na
doçura da compreensão.
De dois homens que olham para um campo verdejante, um
deles calcula o preço das medidas do grão, em prata e
ouro; o outro bebe a linda cor verde do campo com os
olhos, e confraterniza sua alma com todas as radículas das
plantas e todos os pequeninos seixos existentes no mínimo
torrão de terra.
Em verdade, vos digo, que este é o legítimo dono daquele
campo, enquanto o outro só o possui em arrendamento.
De dois homens sentados em uma casa, um deles é o
proprietário e o outro somente o hóspede. O proprietário
discorre prolixamente sobre o custo do prédio e de sua
manutenção, sobre o valor das cortinas e dos tapetes, da
mobília e de outros utensílios. Enquanto isso, o hóspede
abençoa em seu coração as mãos que lavraram as pedras,
afeiçoaram e construíram a casa; as mãos que teceram os
tapetes e as cortinas; as mãos que invadiram a floresta e a
transformaram em janelas, portas e mesas. E o seu espírito
se exalta à Mão Criadora que causou a existência de tudo
isto.
Em verdade, vos digo, que o hóspede é o habitante
permanente daquela casa, enquanto o proprietário nominal
é só um besta de carga que a carrega nas costas, porém,
não mora nela.
De dois homens que compartilham com um bezerro o leite
da mãe deste, um olha para o bezerro com o pensamento
de que sua carne tenra daria um bom assado para ele e
seus amigos comemorarem o seu próximo aniversário; o
outro pensa no bezerro como seu irmão de leite e está
repleto de amor pelo animalzinho e por sua mãe.
Em verdade, vos digo, que o segundo é realmente
alimentado pela carne daquele bezerro; enquanto que o
primeiro é por ela envenenado.
Sim, companheiros, há muita coisa que deveria entrar no
coração, e no entanto entra no estômago.
Muita coisa entra no bolso e na dispensa, quando deveria
ser fechada nos olhos e no nariz.
Muitas coisas são esmagadas pelos dentes, quando
deveriam ser esmagadas pela mente.
É muito pouco aquilo de que o corpo precisa para
sustentar-se. Quando menos lhe derdes, mais ele vos dará
de volta. Quanto mais lhe derdes, menos ele vos dará de
volta.
Em verdade vos digo que as coisas que não vão para a
vossa dispensa nem para o vosso estômago, vos nutrem
muito mais do que aqueles que vão para a dispensa e o
estômago.
Uma vez que ainda não podeis viver somente da
fragrância das coisas, tomai sem receio aquilo de que
necessitais — porém não mais do que necessitais — do
generoso coração da Terra, pois a Terra é tão hospitaleira
e amorosa que seu coração está sempre aberto para os seus
filhos.
Como poderia ser a Terra de outro modo e onde poderia
ela ir, fora de si mesma, para alimentar-se? A Terra
precisa alimentar a Terra e a Terra não é uma anfitriã
avarenta, pois a sua mesa está sempre posta em
abundância para todos.
Da mesma maneira que a Terra vos convida a participar de
sua mesa, nada retendo fora de vosso alcance, da mesma
maneira deveis convidar a Terra para a vossa mesa e dizerlhe
com o maior amor e sinceridade:
— “Oh mãe inexprimível! Assim como tu expões o teu
coração diante de mim, para que eu tome aquilo de que
necessitar, ponho eu meu coração diante de ti, para que
tomes aquilo de que necessitares.”
Se for esse o espírito que vos guia, ao comerdes do
coração da Terra, então pouco importa o que comais.
E se for esse, realmente, o espírito que vos guia, então
tereis sabedoria bastante e amor bastante para não
privardes a Terra de nenhum de seus filhos, especialmente
daqueles que vieram para sentir o prazer de viver e a dor
de morrer — aqueles que acabam de chegar ao segmento
da Dualidade, pois eles também têm um caminho a seguir,
vagaroso e trabalhoso, para a Unidade. E a sua estrada é
mais longa do que a vossa. Se os detiverdes em sua
marcha, eles vos deterão em vossa caminhada.
Abimar: Já que todas as coisas vivas têm que morrer, por
uma ou por outra causa, porque devo eu ter escrúpulos em
ser a causa da morte de qualquer animal?
MIRDAD: Conquanto seja verdade que tudo quanto é vivo
está condenado à morte, mesmo assim é maldito aquele
que causa a morte de qualquer coisa viva.
Assim como tu não me encarregarias de matar Naronda,
sabendo que eu o amo muito e que não há desejo de
sangue em meu coração, também a Vontade Total não
encarregaria um homem de matar outro homem ou animal,
a não ser que o considerasse apto como instrumento de
morte.
Enquanto os homens forem o que são, haverá furtos e
roubos entre eles, e mentiras e guerras e assassínios e toda
sorte de paixões negras e vis.
Mas desgraçados serão o gatuno e o ladrão; e desgraçado
será o mentiroso e o senhor da guerra, e o assassino e todo
homem que aninhar em seu coração paixões negras e vis,
pois eles, estando repletos de desgraça, serão usados pela
Vontade Total como mensageiros da desgraça.
Mas vós, meu Companheiros, deveis limpar os vossos
corações de toda paixão negra e má, para que a Vontade
Total vos ache preparados a levar ao mundo sofredor a
alegre mensagem da redenção do sofrimento; a mensagem
daqueles que se libertaram; a mensagem da Libertação,
através do Amor e da Compreensão.
Assim ensinei a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
CAPÍTULO 25
O dia da videira e a preparação para ele.
Mirdad desaparece na sua véspera.
Naronda: Aproximava-se o Dia da Videira e nós, da Arca,
inclusive o Mestre, juntamente com esquadrões de
ajudantes voluntários que vieram de fora, estávamos
ocupados, dia e noite, preparando tudo para a grande festa.
O Mestre trabalhava com tanto afinco e era tão pródigo de
sua força, que até mesmo Shamadam comentou o fato com
evidente satisfação.
As grandes adegas da Arca haviam sido varridas e caiadas,
e vintenas de grandes vasilhas de barro e de barris,
contendo vinho, tinham sido limpas e arrumadas para
receberem o vinho novo. Muitas outras vasilhas e barris,
contendo vinho da vindima do ano anterior, estavam à
mostra, para que os compradores pudessem provar e
examinar seu conteúdo. Era costume vender, em cada Dia
da Videira, o vinho do ano anterior.
Os espaçosos pátios da Arca tinham que estar bem limpos
e arrumados, e centenas de tendas e barracas ali teriam de
ser armadas, para nelas se hospedarem os peregrinos e
para os mercadores exporem as suas mercadorias, durante
toda a semana que duravam as festividades.
O grande lagar tinha que ser posto em ordem e estar
pronto para receber imensa quantidade de uvas, que eram
trazidas à Arca pelos seus muitos arrendatários e
fregueses, às costas de jumentos, mulas e camelos. Era
necessário assar enorme quantidade de pão e de outras
provisões, para vender àqueles cujas provisões se
houvessem esgotado ou que viessem inteiramente sem
elas.
O Dia da Videira, que a princípio era uma ocasião para
ação de graças, devido ao extraordinário senso e
habilidade comercial de Shamadam, havia sido
prolongado para uma semana e transformado em uma
espécie de feira, à qual homens e mulheres de todas as
esferas da vida, de perto e de longe, acorriam, cada ano em
maior número.
Príncipes e mendigos, lavradores e artesãos, gente que
buscava lucro e gente que buscava prazer e outras coisas,
beberrões e abstêmios totais, peregrinos religiosos e
vagabundos ímpios; homens do templo e homens da
taverna, acompanhados de hordas de bestas de carga — eis
a multidão díspar que invade o sossegado Pico do Altar,
duas vezes por ano, no Dia da Videira, no outono e no Dia
da Arca, na primavera.
Nenhum peregrino chega à Arca, em qualquer dessas
ocasiões, de mãos vazias; todos trazem presentes de uma
ou outra espécie, variando as prendas de um cacho de uvas
ou uma pinha, até um colar de pérolas ou de diamantes.
Isso além da taxa de dez por cento, que é cobrada de todos
os mercadores.
É costume, no dia em que se iniciam as festas, sentar-se o
Superior em uma plataforma alta, posta debaixo de um
grande caramanchão adornado com inúmeros cachos de
uva, e abençoar a multidão, abençoar e receber os
presentes e depois beber com ela a primeira caneca da
nova vindima. Ele costuma encher para si um copo,
despejando o vinho de uma cabaça de pescoço longo, e
depois entregar a cabaça a um dos Companheiros para
passá-la à multidão, enchendo-a cada vez que se esvazia.
Depois que todos enchem seus copos, o Superior pedelhes
que os levantem bem alto e cantem com ele o Hino à
Vide Sagrada, que se diz ter sido cantado pelo pai Noé e
sua família quando pela primeira vez provaram a seiva da
Vide. Tendo cantado o hino, a multidão esvazia as suas
taças com gritos de alegria e se dispersa para se dedicar a
seus vários negócios e prazeres.
É este o Hino à Vide Sagrada:
Salve a Vide Sagrada!
Maravilhoso sarmento
que alimenta o seu rebento
e enche a fruta doirada
com esta bebida apreciada.
Salve a Vide Sagrada!
Estes órfãos do Dilúvio
do sangue desta ramada,
vem abençoar o eflúvio
da parreira abençoada.
Salve a Vide Sagrada!
Vós no barro aprisionados,
Romeiros extraviados:
O Resgate e o Caminho
estão na divina Vide.
A Vide, a Vide, a Vide!
Na manhã do dia anterior à abertura das festividades não
foi possível encontrar o Mestre. Os Sete estavam
inenarravelmente alarmados e, imediatamente, se
organizou uma busca rigorosa. Durante o dia todo e à
noite, com tochas e lanternas, o procuraram, na Arca e nas
vizinhanças, porém, nem indícios do Mestre foi possível
encontrar. Shamadam se mostrava tão interessado e tão
preocupado, que ninguém suspeitou de que estivesse
envolvido no misterioso desaparecimento. Todos, porém,
estavam convencidos de que o Mestre havia sido vítima de
uma perversa cilada.
As grandes festividades prosseguiam, porém, os Sete
estavam mudos e se moviam para cá e para lá como
sombras. A multidão havia cantado o hino e bebido o
vinho e o Superior havia descido da plataforma, quando se
ouviu uma voz que se elevava acima da confusão e do
ruído, feito pela massa do povo:
“Queremos ver Mirdad! Queremos ver Mirdad!”
Reconhecemos que a voz era de Rustidion, que havia
espalhado, por léguas ao redor, tudo quanto o Mestre
havia feito por ele. Dentro em pouco, o seu grito
principiou a ser repetido pela multidão e o clamor pelo
Mestre se tornou geral e ensurdecedor, o que enchia os
nossos olhos de lágrimas e fechava nossas gargantas,
como num torno.
Subitamente, o tumulto amainou e um grande silêncio se
espalhou sobre a multidão. E quase não podíamos crer em
nossos olhos, quando vimos o Mestre, na alta plataforma,
acenando para a multidão.
CAPÍTULO 26
Mirdad falaaos peregrinosacerca do dia da videira e liberta
a arca de um peso morto.
MIRDAD: Cuidado, Mirdad, com a vide cuja safra ainda
não foi colhida, cuja seiva ainda não foi bebida.
Mirdad está ocupado com a sua colheita. Mas os ceifeiros,
ah!, estão ocupados em outras vinhas.
E Mirdad está sufocado com uma superabundância de
sangue. Mas os portadores das canecas e os bebedores
estão muito embriagados com outros vinhos.
Homens do arado, da enxada e do podão, eu abençôo
vossos arados, vossas enxadas e vossos podões.
Que tendes arada, capinado e podado até hoje?
Tendes arado as tristes terras baldias de vossas almas,
aonde vem crescendo toda espécie de mato, havendo-se
tornado assim uma espessa floresta, onde terríveis feras e
venenosas serpentes vivem e se multiplicam?
Tendes capinado e arrancado as nocivas raízes que se
enrolam no escuro e estrangulam as vossas raízes,
destruindo a vossa safra ainda em botão?
Ou tendes podado aqueles ramos de vós próprios que estão
carcomidos pelos vermes ou ressecados pelo furioso
ataque das parasitas?
Bem, vós tendes aprendido a arar, capinar e podar vossas
vinhas da terra. Mas a vinha que não é da terra, que sois
vós, essa jaz tristemente abandonada e sem ter quem dela
cuide.
Como será vão o vosso trabalho, se não cuidardes dos
vinhateiros antes de cuidardes da vinha!
Homens de mãos calosas, abençôo os vossos calos.
Amigos do prumo e da régua; companheiros do malho e
da bigorna; artistas do escopro e do serrote, como sois
hábeis e competentes em todos os vossos ofícios!
Sabeis como encontrar o nível e a profundidade das coisas.
Mas a vossa própria profundidade e o vosso nível não
sabeis achar.
Rapidamente, dais forma a um pedaço de ferro bruto,
como o malho e a bigorna. Mas não sabeis dar forma ao
homem bruto, usando o malho da Vontade e a bigorna da
Compreensão. Nem aprendestes, com a bigorna, a preciosa
lição de receber pancadas sem reagir e sem devolvê-las a
quem as deu.
Sois hábeis com o escopro e o serrote, tanto na pedra
como na madeira. Mas o homem grosseiro e cheio de
imperfeições, vós não sabeis tornar suave e macio.
Como são inúteis as vossas artes se não as aplicardes
primeiramente aos artistas!
Homens, que para obter lucro negociais com as dádivas da
vossa Terra-Mãe e os produtos das mãos de vossos
semelhantes!
Abençôo as necessidades, as dádivas e os produtos, e
também abençôo os negócios. Mas o lucro em si, que na
verdade é uma perda, não encontra bênção em minha
boca.
Quando, na funesta calada da noite, fazeis o balanço das
atividades do dia, que é que lançais como lucro, e que é
que lançais como perda? Lançais como lucro o dinheiro
ganho acima e além do custo? Então, em verdade, foi
inútil o dia que vendestes por uma soma de dinheiro, não
importa fosse ela grande. E foi perdida para vós toda a
infinita riqueza desse dia em harmonia, paz e luz. Perdidos
também os seus incessantes chamados à Liberdade; e
perdidos também os corações dos homens que ele vos
ofereceu como presentes, postos sobre as palmas de suas
mãos.
Quando o vosso maior interesse é a bolsa dos homens,
como podeis encontrar o caminho para os seus corações?
E se não encontrardes o caminho para o coração dos
homens, como podereis atingir o coração de Deus? E se
não atingirdes o coração de Deus, que vida tereis?
E se o que considerais lucro, na realidade é perda, que
imensa perda é essa!
Em verdade serão vãos todos os vossos negócios, se os
lucros não forem computados em Amor e Compreensão.
Homens do cetro e da coroa!
É uma serpente o cetro na mão daquele que é muito rápido
no ferir e vagaroso no aplicar os ungüentos curativos;
enquanto que, na mão que propicia o bálsamo do Amor, o
cetro é um pára-raios que impede o infortúnio e a
condenação.
Examinai bem as vossas mãos.
Uma coroa de ouro, cravejada de brilhantes, rubis e safiras
é muito pesada, triste e desajeitada numa cabeça estufada
de vanglória, ignorância e cobiça de poder sobre os
homens. Sim, tal coroa sobre esse pedestal não passa de
um cáustico escárnio do seu próprio pedestal. No entanto,
uma coroa, das mais ricas pedras preciosas, se
envergonharia do seu pouco valor, para se apoiar sobre a
cabeça ornada pela aura da Compreensão e da vitória
sobre si mesmo.
Examinai bem as vossas cabeças.
Quereis governar os homens? Aprendei primeiro a
governar-se a vós mesmos.
Como podereis governar bem, senão sendo bem autogovernados?
Pode uma onda bravia, espumejante e
impelida pelo vento, trazer paz e serenidade ao Mar?
Podem uns olhos lacrimejantes projetar um abençoado
sorriso em um coração que chora? Pode a mão trêmula de
medo ou de ódio conservar um navio na sua rota?
Os governantes de homens são governados por homens. E
os homens estão cheios de tumultos, desordem e confusão.
Tal qual o mar, estão expostos a todos os ventos da
atmosfera. Tal qual o mar, têm seus fluxos e refluxos de
maré, parecendo, às vezes, que vão devastar a praia. Tal
qual o mar, porém, as suas profundezas são calmas e
imunes às ventanias que lhes encapelam a superfície.
Se quereis realmente governar os homens, penetrai no
abismo do seu íntimo, pois os homens são mais do que
ondas espumejantes. Para penetrardes nas profundezas dos
homens é preciso que tenhais penetrado em vossas
próprias profundezas. E para isto precisais abandonar o
cetro e a coroa, para que as mãos estejam livres para sentir
e a cabeça desembaraçada para pensar e refletir.
Vão é o vosso governo, fora da lei estarão todas as vossas
leis e confusão será a vossa ordem, se não aprenderdes a
governar o homem rebelde, que há em vós, cuja diversão
predileta é brincar com cetros e coroas.
Homens do turíbulo e do Livro! Que é que queimais no
incensório? Que ledes vós no Livro?
Queimais a seiva amarela e aromática que flui de certas
plantas e endurece ao ar? Mas isso é comprado e vendido
nos mercados públicos, e o que se compra por algumas
moedas basta para importunar bastante qualquer deus.
Pensais que o aroma do incenso pode abafar a fedentina do
ódio, da inveja e da ambição; dos olhos trapaceiros, das
línguas que prevaricam, das mãos lascivas; da descrença
que se apresenta como fé, da sordidez terrena que toca
trombeta, dizendo-se um abençoado paraíso?!
Mais agradável às narinas de vosso Deus seria o cheiro de
todas estas coisas, se morressem por recusardes alimentálas
e as cremásseis, uma a uma, em vossos corações,
espalhando as cinzas aos quatro Ventos do céu.
Que é que queimais no turíbulo? Propiciações, louvores e
súplicas?
Um deus iracundo merece ser abandonado à sua ira, para
que rebente. Um deus que tem sede de louvores, merece
ser abandonado para que morra de sua própria sede. Um
deus de coração dura deve morrer da dureza de seu
coração.
Mas Deus não é iracundo, nem tem sede de louvores, nem
é duro de coração. Vós é que sois iracundos, sedentos de
louvores e duros de coração.
Nem quer que lhe queimeis incenso, mas que queimeis a
vossa ira e o vosso orgulho e a dureza de vosso coração,
para que possais ser como Ele: livre e onipotente. Ele quer
que vossos corações sejam os incensórios.
Que ledes vós no Livro?
Ledes os mandamentos para serem inscritos a ouro nas
paredes e cúpulas dos templos? Ou para serem inscritos,
como verdades vivas, nos corações?
Ledes as doutrinas para serem ensinadas dos púlpitos e
zelosamente defendidas com lógica, artifícios de
linguagem e, se necessário for, com dinheiro e o gume das
espadas? Ou ledes a Vida, que não é uma doutrina para ser
ensinada e defendida, mas um Caminho a ser trilhado com
a vontade de obter a Libertação, no templo ou fora dele, de
noite ou de dia, nos lugares baixos tanto quanto nos altos?
E enquanto não estiverdes nesse Caminho e tiverdes
certeza do seu fim, como tereis a ousadia de convidar
outros as o trilharem?
Ou ledes tabelas, mapas e listas de preços no Livro,
mostrando aos homens quanto de céu se pode comprar em
troca de tanto ou quanto desta terra?
Trapaceiros e agentes de Sodoma! Quereis vender o Céu
aos homens e tomar em pagamento o quinhão que eles
possuem da Terra. Quereis fazer da Terra uma gehenna e
estimulais os homens a fugir, enquanto vos agarrais a ela.
Por que não os fazeis vender sua parte no Céu por uma
parte na Terra?
Se houvésseis lido bem o vosso Livro, mostraríeis aos
homens como fazer da Terra um céu, pois para aquele que
tem um coração celeste, a Terra é um céu. E para o
homem que tem um coração terreno, o Céu é uma Terra.
Tirai os véus que cobrem o Céu nos corações dos homens,
removendo as obstruções que há entre eles e os seus
irmãos na Terra; entre o Homem e todas as criaturas; entre
o Homem e Deus. Mas para isso teríeis que possuir, vós
mesmos, um coração celeste.
O Céu não é um jardim florido que se possa comprar ou
alugar. Mas é um estado de ser que se atinge na Terra ou
em qualquer ponto do infinito Universo. Por que curvar o
pescoço e alongar a vista para o além?
Nem é o Inferno um fogo devorador, ao qual se possa
escapar com muitas orações, ou queimando incenso. Mas
sendo um estado do coração, exprimenta-se o Inferno tão
bem aqui na Terra, como em qualquer outro ponto da
imensidade infinita.
Para onde fugiríeis de um fogo, cujo combustível é o
coração a não ser que fugísseis do próprio coração?
É vã a procura do Céu, e em vão se foge do Inferno
enquanto o Homem está preso à sua sombra. Tanto o Céu
como o Inferno são estados de ser inerentes à Dualidade.
Exceto quando o Homem se torna uma só mente, um só
coração e um só corpo; exceto quando ele não tiver mais
sombra e possuir uma só Vontade, terá sempre um pé no
Céu e outro no Inferno. E isso é, verdadeiramente, o
Inferno.
Sim, é mais do que o Inferno ter asas de luz e pés de
chumbo; ser elevado pela esperança e arrastado para baixo
pelo desespero; desferrar as velas pela fé impávida, e vêlas
ferradas pelo pavor da dúvida.
Nenhum céu é céu que para os outros seja inferno.
Nenhum inferno é inferno que para os outros seja céu. E
como o inferno de alguns é freqüentemente o céu de
outros, e o céu de alguns é muitas vezes o inferno de
outros, então Céu e Inferno não constituem estados
passageiros e contraditórios, mas sim estágios pelos quais
ambos têm que passar, em sua longa peregrinação para a
Liberdade.
Peregrinos da Vide Sagrada!
Mirdad não tem nenhum céu para vender ou conceder para
aqueles que queiram ser virtuosos. Nenhum inferno para
servir de espantalho aos que queiram ser maus.
A não ser que a vossa virtude seja o vosso próprio céu,
florescerá durante um dia para depois fenecer.
A não ser que a vossa maldade seja o vosso próprio
espantalho, dormirá por um dia e acordará na primeira
ocasião favorável.
Mirdad não tem céus nem infernos para vos oferecer, mas
vos oferece a Sagrada Compreensão que vos elevará muito
acima do fogo de qualquer inferno e do esplendor de
qualquer céu. Não é com as mãos, porém com o coração
que tereis de receber este presente, pois para recebê-lo
deve estar o coração desembaraçado de qualquer outro
desejo e vontade, salvo o desejo e a vontade de
compreender.
Não sois estrangeiros na Terra, nem a Terra é para vós
madrasta. Sois o coração de seu coração e a espinha dorsal
de sua espinha dorsal. Ela se sente satisfeita em sustentarvos
sobre o seu forte e longo dorso. Por que insistis em
sustentá-la sobre os vossos fracos peitos, gemendo,
arfando e sentindo que vos falta o ar?
Os úberes da Terra estão manando leite e mel. Por que
deixais que ambos se azedem com a vossa cobiça,
tomando mais do que necessitais?
Serena e sossegada é a face da Terra. Por que a agitais e a
encrespais com a amargura da luta e do medo?
A Terra é uma perfeita unidade. Por que insistis em
desmembrá-la com espadas e fronteiras?
Obediente e despreocupada é a Terra. Por que sois vós
insubordinados e cheios de preocupações?
No entanto, vós sois mais duradouros do que a Terra, o
Sol e todas as esferas dos céus. Tudo isso passará, porém,
vós não passareis. Por que haveis de tremer como folhas
ao vento?
Se nada mais vos pode fazer sentir a vossa unidade com o
Universo, a Terra poderá fazê-lo. No entanto, a Terra é
somente um espelho no qual vossas sombras se refletem. É
o espelho mais do que o que ele reflete? É a sombra
produzida por um homem mais do que o homem?
Esfregai vossos olhos e despertai. Vós mais do que a terra.
Vosso destino é mais do que viver e morrer e fornecer
alimento abundante para as sempre famintas goelas da
Morte. Vosso destino é vir a ser livre do viver e do morrer,
do Céu e do Inferno e de todos os opostos inerentes à
Dualidade. Vosso destino é serdes videiras frutíferas, nas
eternas e frutíferas vinhas de Deus.
Como o ramo vivo de uma videira viva, ao ser enterrado
na terra, desenvolve raízes e afinal de torna uma vida
independente que produz uvas como a sua mãe, à qual
continua ligada, assim será o Homem o ramo vivo da
Divina Videira, quando for enterrado no solo de sua
divindade, tornando-se eternamente uno com Deus.
Deve o Homem ser enterrado vivo a fim de despertar para
a Vida?
Sim, sem dúvida sim. Se não morrerdes para a dualidade
da vida e da morte não podereis despertar para a unidade
do Ser.
Se não fordes alimentados com as uvas do Amor, não
sereis saciados com o vinho da Compreensão.
E se não vos embriagardes com o vinho da Compreensão
não vos tornareis sóbrios com o beijo da Liberdade.
Não é Amor que comeis, quando comeis o fruto da videira
terrestre. Comeis uma fome maior para aplacar uma fome
menor.
Não é Compreensão que bebeis, quando bebeis o sangue
da videira terrestre. Bebeis um curto esquecimento da dor,
o qual logo cessa e a dor se torna duas vezes mais aguda.
Fugis de uma personalidade aborrecida, somente para
tornar a encontrá-la ao virar a esquina.
As uvas que Mirdad vos oferece, não estão sujeitas ao
mofo e à podridão. Uma vez saciados com elas, estareis
saciados para sempre. O vinho que delas ele destilou para
vós, é demasiado forte para os lábios que temem ser
queimados, mas estimulante para os corações que querem
embriagar-se, com o esquecimento do eu na eternidade.
Há entre vós alguém que esteja faminto por minhas uvas?
Que venha para a frente com a sua cesta.
Há alguém que tenha sede do meu sangue? Que traga o
seu copo.
Mirdad está curvado ao peso de sua safra e afogando-se
com a abundância da seiva.
O Dia da Vide Sagrada era um dia de esquecimento de si
mesmo. Um dia embriagado de Amor e banhado na luz da
Compreensão. Um dia de êxtase no compasso rítmico das
asas da Liberdade. Um dia de eliminação das barreiras e
de cada um mergulhar no todo e todos em um. Em que se
tornou ele hoje?
Tornou-se num dia de mórbida auto-afirmação; um dia em
que a ambição sórdida negocia com a ambição sórdida; em
que a escravidão se diverte com a escravidão, e a
ignorância corrompe a ignorância.
A própria Arca, que era antigamente uma destilaria da Fé,
do Amor e da Liberdade, tornou-se agora um gigantesco
lagar onde se espremem uvas e um monstruoso mercado.
Ela recebe o produto de vossas vinhas e vo-lo torna a
vender sob a forma de vinho estupefaciente. Do trabalho
de vossas mãos, ela forja as algemas para os vossos
pulsos. O suor de vossa testa, ela transforma em brasas,
para marcar a fogo as vossas testas.
Para longe, para muito longe da rota que lhe havia sido
delineada, desviou-se a Arca. Mas agora o seu leme está
no ângulo certo. Precisava ser liberada de todo peso morto
para que pudesse retomar a sua rota, com facilidade e
segurança.
Em vista disso, todos os presentes serão devolvidos aos
seus doadores e todos os débitos de seus devedores serão
cancelados. A Arca nada recebe senão de Deus, e Deus
não quer que ninguém deva, num mesmo a Ele.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
CAPÍTULO 27
A verdade deve ser pregada a todos ou somente a uns
poucos escolhidos?
Mirdad revela o segredo do seu desaparecimento na
véspera do dia da videira e fala da falsa autoridade.
Naronda: Muito tempo após a festa, quando dela só
restava a memória na mente dos Sete, achavam-se estes
reunidos em volta do Mestre, no Ninho da Águia. O
Mestre estava em silêncio e os companheiros relembravam
os memoráveis acontecimentos daquele dia. Alguns se
maravilhavam da explosão de entusiasmo com que a
multidão recebeu as palavras do Mestre. Outros
comentavam o comportamento estranho e incompreensível
de Shamadam, no momento em que centenas de
documentos de dívidas, não resgatados, foram retirados da
tesouraria da Arca e publicamente destruídos, bem como
centenas de bilhas e barris de vinho, retirados das adegas e
dados de graça e muitos presentes valiosos devolvidos a
seus doadores; pois ele não se opôs, de modo algum, como
nós esperávamos que fizesse, mas observava tudo aquilo
imóvel e em silêncio, enquanto as lágrimas lhe corriam
pela face.
Bennoon observou que embora a multidão o aclamasse até
ficar rouca, não era devido às palavras do Mestre, mas
devido aos débitos cancelados e aos presentes devolvidos.
E chegou mesmo a, suavemente, censurar o Mestre, por
desperdiçar o seu fôlego, com aquela multidão que
nenhum prazer mais elevado buscava, senão o de comer,
beber e alegrar-se. A Verdade, disse, não deveria ser
pregada indiscriminadamente a todos, mas a uns poucos
escolhidos.
Então falou o Mestre e disse:
MIRDAD: Vosso fôlego solto ao vento, certamente
encontrará asilo em algum coração. Não procureis saber a
quem pertence o coração. Cuidai apenas de que o alento
seja puro.
Vossa palavra procurará e encontrará certamente algum
ouvido. Não pergunteis de quem é o ouvido. Cuidai
somente de que a palavra seja uma mensageira legítima da
Liberdade.
Vosso pensamento silencioso certamente moverá alguma
língua a falar. Não pergunteis de quem é a língua.
Verificai somente se o pensamento está cheio de amorosa
Compreensão.
Não penseis que algum esforço possa ser desperdiçado.
Algumas sementes ficam enterradas por muitos anos, mas
rapidamente brotam quando estimuladas pelo alento da
primeira estação favorável.
A semente da Verdade está em todos os homens e em
todas as coisas. A vossa tarefa não é semear a Verdade,
mas preparar a estação favorável para que a semente possa
brotar.
Todas as coisas são possíveis na eternidade. Não vos
iludais, portanto, da libertação de quem quer que seja, mas
pregai a mensagem da Liberdade a todos com a mesma fé
e zelo — ao que não anseia e ao que anseia por ela, pois
aquele que não anseia, certamente virá a ansiar e os que
agora não têm asa, um dia estenderão as suas ao Sol e
voarão aos inacessíveis páramos.
Micaster: Põe-nos tristes o fato de que até hoje, muito
embora repetidas vezes lhe tenhamos perguntado, o
Mestre ainda não nos haja revelado o segredo de seu
misterioso desaparecimento na véspera do Dia da Vide.
Não seremos merecedores da sua confiança?
MIRDAD: Quem quer que mereça o meu amor,
certamente merece a minha confiança. É a confiança mais
do que o Amor, Micaster? Não vos estou dando,
incessantemente, do meu coração?
Se não vos falei dessa circunstância desagradável, foi
porque estava dando a Shamadam tempo para que se
arrependesse. Foi ele que, com auxílio de dois estranhos,
me levou à força para fora deste Ninho da Águia e me
atirou no Abismo Negro. Infeliz Shamadam! Jamais
poderia sonhar que o Abismo Negro receberia Mirdad com
mãos de seda e lhe forneceria escadas mágicas para que
ele voltasse ao pico.
Naronda: Ao ouvirmos isso, todos nós levamos um choque
e ficamos estarrecidos. Ninguém ousava perguntar ao
Mestre como havia saído incólume daquilo que a todos
parecia uma perdição certa. Ficamos em silêncio por
algum tempo.
Himbal: Por que Shamadam persegue nosso Mestre,
enquanto o nosso Mestre ama Shamadam?
MIRDAD: Não é a mim que Shamadam persegue.
Shamadam persegue Shamadam.
Dai aos cegos uma semelhança de autoridade e eles
arrancarão os olhos de todos os que vêem, até mesmo os
olhos daqueles que trabalham duramente para fazer com
que eles vejam.
Dai ao escravo, durante um só dia, o poder de fazer a sua
vontade e ele transformará o mundo em um mundo de
escravos. Os primeiros a quem ele flagelará e algemará
serão aqueles que trabalharam intensamente para libertálo.
Toda e qualquer autoridade deste mundo é falsa. Por isso
ela tine as esporas e brande a espada e cavalga seus
corcéis, com espalhafatosa pompa e cerimônias reluzentes,
para que ninguém possa perceber a falsidade que há em
seu coração. O seu trono cambaleante está apoiado em
canhões e lanças. A sua alma, repleta de vaidade está
enfeitada com amuletos que inspiram medo e emblemas de
necromancia, para que os olhos curiosos não descubram a
sua miséria.
Essa autoridade, além de ser cega, é maldição para o
homem que anseia por exercê-la, pois tenta manter-se a
todo custo, mesmo ao pavoroso custo de destruir o próprio
homem, aqueles que aceitam sua autoridade e os que a ela
se opõem.
Devido à sua cobiça pela autoridade, estão os homens em
constante inquietação. Os que exercem autoridade estão
constantemente lutando para mantê-la. Os que não a têm
não cessam de lutar para subtraí-la das mãos dos que a
exercem. Entrementes, o Homem, o Deus enfaixado, é
pisoteado pelos pés e pelos cascos dos cavalos e
abandonado no campo de batalha, esquecido, sem socorro
e sem ter quem dele se apiede.
Tão renhida é a luta e tão enlouquecidos pelos sangue são
os que lutam, que ninguém pára, a fim de levantar a
máscara da noiva espúria e expor à vista de todos o seu
horroroso semblante.
Acreditai, ó monges, que nenhuma autoridade vale um
piscar de olhos a não ser a da Sagrada Compreensão, que
não tem preço. Para alcançá-la, nenhum sacrifício é
excessivo. Uma vez conseguida, permanecerá até o fim
dos Tempos. E dará às vossas palavras maior poder do que
aquele de que possam desfrutar todos os exércitos do
mundo e abençoará vossas ações com maiores benefícios
do que todas as autoridades, em conjunto, poderiam
sonhar em trazer ao mundo.
Isso porque a Compreensão é o seu próprio escudo; sua
poderosa arma é o Amor. Não persegue nem tiraniza, mas
cai como o orvalho, suavemente sobre os áridos corações
humanos, tanto para aqueles que rejeitam as suas bênçãos,
como para aqueles que com ela se saciam; pois,
conscientes de sua força interna, jamais recorre à força
externa e não sendo presa do medo, não usa da
intimidação como arma, com que tente impor-se a
qualquer ente humano.
O mundo é pobre, paupérrimo, de Compreensão. E por
isso, tenta esconder a sua pobreza com o véu da falsa
autoridade. E a falsa autoridade faz aliança defensiva e
ofensiva com o falso poder, pondo-se ambos a comandar o
Medo. E o Medo os destrói a ambos.
Não tem havido sempre o costume dos fracos aliarem-se
para proteger a sua fraqueza? Assim as autoridades deste
mundo e a força gruta trabalham de mãos dadas, sob o
chicote do Medo, pagando diariamente, seu imposto à
Ignorância, em guerras, em sangue e em lágrimas. E a
Ignorância, com um sorriso benigno nos lábios, olha para
tudo isso e diz: “Muito bem!”
“Muito bem!”, disse Shamadam a Shamadam ao atirar
Mirdad ao Abismo. Mas sabia Shamadam, porém, que
tendo-me atirado ao Abismo, havia atirado a si mesmo, e
não a mim. Isso porque o Abismo não pode reter Mirdad;
enquanto Shamadam tem que lutar com todas as forças e
por muito tempo, a fim de subir pelas suas encostas
escuras e escorregadias.
A autoridade deste mundo é como que um chocalho.
Deixai os que ainda são bebês na Compreensão, que se
divirtam com ela. Mas vós não precisais vos impor a
homem algum. Aquilo que é imposto pela força, mais
cedo ou mais tarde será deposto pela força.
Não busqueis autoridade sobre a vida dos homens: sobre
ela, só a Vontade Total é senhora. Nem busqueis
autoridade sobre os bens dos homens, pois os homens
estão acorrentados a seus bens, tanto como às suas vidas;
por isso desconfiam daqueles que interferem em suas
correntes e os odeiam. Procurai, porém, um caminho para
o coração dos homens por intermédio do Amor e da
Compreensão; e uma vez ali instalados, melhor podereis
trabalhar para libertá-los de suas correntes.
Assim, o Amor guiará vossas mãos, enquanto a
Compreensão segura a lanterna.
CAPÍTULO 28
O príncipe de Bethar aparece com Shamadam no Ninho da
Águia.
O colóquio entre o príncipe e Mirdad acerca de guerra e
paz.
Mirdad é aprisionado por Shamadam.
Naronda: Logo que o Mestre acabara de proferir aquelas
palavras, e enquanto principiávamos a meditar sobre elas,
ouvimos pesados passos fora do Ninho da Águia,
acompanhados de palavras abafadas. Subitamente, dois
soldados gigantescos, armados até os dentes, surgiram à
entrada da gruta e se puseram de guarda, um de cada lado,
com as espadas desembainhadas reluzindo ao sol. A seguir
chegou um jovem príncipe, em uniforme de gala, seguindo
timidamente por Shamadam, e atrás dele, mais dois
soldados.
O príncipe era um dos mais poderosos e famosos
potentados das Montanhas Alvas. Parou, por um momento
à entrada, e observou cuidadosamente o rosto das pessoas
presentes. Depois, fixando o olhar no Mestre, curvou-se e
disse:
Príncipe: Salve, santo homem! Viemos prestar
homenagem ao grande Mirdad, cuja fama atravessou o
espaço e chegou à nossa distante capital.
MIRDAD: A fama viaja em um carro veloz no
estrangeiro. Aqui ela coxeia e anda de muletas. O Superior
é minha testemunha disso. Não confieis, príncipe, nos
caprichos da fama.
Príncipe: No entanto, bem doces são os caprichos, e doce é
para alguém ter o seu nome impresso no lábio dos
homens.
MIRDAD: É como ter o nome escrito nas areias da praia,
tê-lo impresso nos lábios dos homens. Os ventos e as
marés o apagarão das areias. Um espirro o soprará para
fora dos lábios. Se não quiserdes ser espirrado fora pelos
homens, não imprimais vosso nome em seus lábios, mas
gravai-o a fogo em seus corações.
Príncipe: Fechados com muitos cadeados estão os
corações dos homens.
MIRDAD: Podem ser muitos os cadeados, mas a chave é
uma só.
Príncipe: E tendes essa chave? Necessito muito dela.
MIRDAD: Vós também a tendes.
Príncipe: Ai de mim! Vós me avaliais por um preço mais
alto do que eu realmente valho. Há muito que procuro a
chave para o coração do meu vizinho e em lugar algum a
encontro. Ele é um poderoso príncipe e está inclinado a
me fazer guerra. Eu sou forçado a levantar os braços
contra ele, embora deseje a paz. Não vos deixeis iludir
pelo meu diadema e minhas roupas cobertas de pedras
preciosas, Mestre. Nelas não encontro a chave que busco.
MIRDAD: Elas escondem a chave, porém não a contêm.
Embaraçam vossos passos, estorvam vossas mãos e
distraem vossos olhos, tornando assim vossa busca
improfícua.
Príncipe: Que quer o Mestre dizer com isso? Devo
abandonar meu diadema e minhas vestes para encontrar a
chave do coração de meu vizinho?
MIRDAD: Para conservar essas coisas tereis que perder o
vosso vizinho. Para conservar o vizinho tereis que perdêlas.
E perder o vizinho é perder a si mesmo.
Príncipe: Não compraria, por esse preço exorbitante, a
amizade do meu vizinho.
MIRDAD: Não vos compraríeis por esse preço tão vil?
Príncipe: Comprar-me a mim?! Não sou prisioneiro para
ter que pagar resgate. E, além disso, tenho um exército
bem pago e bem armado para me proteger. Meu vizinho
não pode gabar-se de ter um melhor.
MIRDAD: Ser prisioneiro de um homem ou de alguma
coisa é simplesmente a prisão mais amarga que há de se
atuar. Ser prisioneiro de um exército de homens e de um
ror de coisas é o desterro sem resgate. Depender de algo é
estar preso a isso. Dependei, pois, somente de Deus. Ser
prisioneiro de Deus é, realmente, ser livre.
Príncipe: Devo, pois, deixar a mim mesmo o meu trono e
os meus súditos sem proteção?
MIRDAD: Não deveis ficar desprotegido.
Príncipe: Então devo manter o meu exército?
MIRDAD: Deveis dissolver vosso exército.
Príncipe: Mas o meu vizinho imediatamente invadiria o
meu reino.
MIRDAD: O vosso reino ele poderia invadir, mas a vós,
nenhum homem pode engolir. Duas prisões fundidas em
uma, não constituem um pequenino lar para a Liberdade.
Regozijai-vos, se algum homem vos expulsar de vossa
prisão; não invejeis, porém, o homem que vier fechar-se
convosco, em vossa prisão.
Príncipe: Sou descendente de uma raça famosa pelo seu
valor no campo de batalha. Jamais forçamos outros povos
à guerra. Quando, porém, nos forçam a ela, jamais nos
esquivamos e jamais abandonamos o campo, a não ser
com nossas bandeiras drapejando sobre os cadáveres do
inimigo. Dais-me maus conselhos, senhor, ao dizer-me
que devo deixar o meu vizinho fazer o que quiser.
MIRDAD: Não dissestes que quereis a paz?
Príncipe: Sim, quero-a.
MIRDAD: Então não luteis.
Príncipe: Mas o meu vizinho insiste em lutar contra mim,
e eu preciso lutar contra ele para que possa haver paz entre
nós.
MIRDAD: Quereis matar o vosso vizinho para poderdes
viver em paz com ele! Que estranho espetáculo! Não há
mérito em viver em paz com os mortos. É, porém, uma
grande virtude viver em paz com os vivos. Se vos
empenhais numa guerra contra qualquer homem vivo ou
contra qualquer coisa, cujos gostos ou interesses possam,
às vezes, colidir com os vossos, então deveis também
empenhar-vos em uma guerra contra Deus que permite
que estas coisas sejam assim. E deveis declarar guerra ao
Universo, pois há nele inúmeras coisas que perturbam a
vossa mente e incomodam o vosso coração e, queirais ou
não queirais, se intrometem na vossa vida.
Príncipe: Que devo fazer, se desejo paz com o meu
vizinho e ele quer lutar?
MIRDAD: Lutai!
Príncipe: Agora me aconselhais acertadamente.
MIRDAD: Sim, lutai! Não porém com vosso vizinho.
Lutai com tudo aquilo que vos leva, a vós a vosso vizinho,
à luta. Por que deseja vosso vizinho lutar convosco? Será
por que tendes os olhos azuis e ele castanhos? Será por
que sonhais com anjos e ele sonha com demônios? Ou será
por que o amais e considerais tudo que é vosso, como
sendo dele?
São as vossas vestimentas, ó príncipe, o vosso trono, vossa
riqueza, vossa glória e as coisas de que sois prisioneiro,
que fazem que o vosso vizinho queira lutar convosco.
Quereis vencê-lo sem levantar uma só lança contra ele?
Quereis detê-lo na sua marcha contra vós? Então declarai
guerra a estas coisas. Quando as tiverdes conquistado,
libertando a vossa alma dessas muletas; quando as tiverdes
lançado ao monte de lixo, talvez o vosso vizinho suspenda
a sua marcha e embainhe a sua espada, dizendo de si para
si: “Se estas coisas valessem uma guerra, meu vizinho não
as teria lançado ao monturo.”
Se o vosso vizinho perseverar no seu propósito e se, na sua
loucura, carregar para si o monturo, alegrai-vos por vos
haverdes livrado de carga tão pestilenta e apiedai-voa da
sorte do vosso vizinho.
Príncipe: Que dizeis de minha honra, que vale muito mais
do que os meus bens?
MIRDAD: A única honra do homem é ser Homem —
imagem e semelhança de Deus. Todas as outras honras são
desonras.
Todas as honras, conferidas pelos homens, são facilmente
destruídas pelos homens. Uma honra escrita pela espada é
facilmente apagada pela espada. Nenhuma honra, ó
príncipe, vale uma lança enferrujada, menos ainda uma
lágrima que arde e ainda menos uma gota de sangue.
Príncipe: E a liberdade — minha liberdade e a de meu
povo — não vale o grande sacrifício?
MIRDAD: A verdadeira Liberdade vale o sacrifício do eu.
As armas do vosso vizinho na A podem defender. E o
campo de batalha é, para Ela, a sepultura.
A verdadeira Liberdade é ganha ou perdida no coração.
Quereis a guerra? Declarai-a dentro do vosso próprio
coração. Desarmai vosso coração de toda esperança, medo
e desejos vãos, que tornam o vosso mundo uma prisão
sufocante e o achareis mais amplo de que o Universo:
andareis por esse Universo à vossa vontade e nada será
para vós empecilho.
Esta é a única batalha que vale a pena travar. Começai esta
guerra e não mais tereis tempo para outras, que tornariam,
para vós, bestialidade aborrecida e armadilhas diabólicas
que desviariam a vossa mente e diminuiriam o vosso
vigor, fazendo-vos assim, perder a grande guerra contra
vós mesmo, a qual é realmente, uma guerra santa. Quem
ganha essa guerra conquista a glória imorredoura. Mas a
vitória, em qualquer outra guerra, é pior do que a derrota
total. É esse o horror das guerras dos homens, em que
tanto o vencedor como o vencido enfrentam a derrota.
Quereis a paz? Não a procureis em documentos
palavrosos; não tenteis gravá-la nem mesmo nas rochas.
Isso porque a pena que rabisca “Paz”, também, com a
mesma facilidade pode rabiscar “Guerra”; e o escopro que
grava “Tenhamos paz”, pode facilmente gravar
“Tenhamos guerra”. E, além disso, o papel e a rocha, a
pena e o escopro, logo são atacados pela traça, pela
podridão, pela ferrugem e por toda a alquimia que
transmuta os elementos. Não é assim que sucede com o
coração do Homem, que está fora do tempo, pois esse
coração é o reduto da Sagrada Compreensão.
Logo que a Compreensão se revela, está alcançada a
vitória, e a Paz se estabelece no coração, de uma vez para
sempre. O coração compreensivo está sempre em paz,
mesmo no meio de um mundo enlouquecido pela guerra.
O coração ignorante é um coração dividido em dois. O
coração dividido em dois, forma um mundo dividido em
dois. Um mundo, dividido em dois, cria sempre a luta e a
guerra.
Por outro lado, o coração compreensivo é um coração uno.
Um coração uno faz um mundo uno. E o mundo uno é um
mundo de paz, pois são necessários dois para que haja
uma guerra.
Eis porque vos aconselho a entrar em guerra com o vosso
coração a fim de o fazerdes uno. O prêmio da vitória é a
Paz eterna.
Quando puderdes ver, ó príncipe, em qualquer pedra um
trono, e em qualquer caverna um castelo, então o Sol se
alegrará em ser vosso trono e as constelações os vossos
castelos. Quando um malmequer do campo for para vós a
mais linda medalha, e um verme qualquer o vosso
professor, então as estrelas se alegrarão em pousar no
vosso peito e a Terra estará pronta para ser o vosso
púlpito.
Quando puderdes governar o vosso coração que vos
importará quem seja aquele que governa o vosso corpo?
Quando o Universo todo for vosso, que vos importará
quem seja aquele que domina esta ou aquela parte da
Terra?
Príncipe: Vossas palavras são sedutoras . Mas a mim me
parece que a guerra é uma lei na Natureza. Não estão até
os próprios peixes do mar em guerra constante? Não é o
fraco presa do forte? Eu não quero ser presa de ninguém!
MIRDAD: O que vos parece guerra não é senão o modo
da Natureza alimentar-se e propagar-se. O fraco é
alimento do forte, tanto quanto o forte é alimento do fraco.
Quem é forte e quem é fraco na Natureza?
Só a Natureza é forte; tudo o mais é fraco e obedece às leis
da Natureza, navegando humildemente pelas correntezas
da Morte.
Só o imortal pode ser classificado como forte. E o Homem
é imortal, ó príncipe. Sim, maior do que a Natureza é o
Homem. Ele como do coração de carne da Natureza para
chegar ao seu coração sem carne. Ele se propaga para
elevar-se acima da auto-propagação.
Deixai que os homens, que querem justificar os seus
desejos impuros, pelos instintos puros dos animais, se
denominem a si mesmos, ursos selvagens, ou lobos, ou
chacais, ou o que quiserem, mas não permitais que
achincalhem o nobre nome de Homem.
Crede em Mirdad, ó Príncipe, e ficai em paz.
Príncipe: O Superior disse-me que Mirdad é bem versado
nos mistérios da magia; eu gostaria que manifestasse
alguns de seus poderes para que eu pudesse crer nele.
MIRDAD: Se revelar Deus no Homem é magia, então
Mirdad é mago. Quereis uma prova e uma manifestação de
minha magia?
Aqui está: eu sou a prova e a manifestação. Ide avante.
Fazei o trabalho que vieste executar aqui.
Príncipe: Bem, adivinhastes que eu tenho outro trabalho a
fazer, que não o de me divertir com as vossas loucuras. O
príncipe de Bethar é um mago de outra espécie; e agora
vai fazer uma demonstração de sua arte.
O Príncipe falando a seus homens: Trazei as algemas e
prendei as mãos e os pés deste Deus-Homem ou Homem-
Deus. Mostraremos a ele e a seus companheiros de que
espécie é a nossa magia.
Naronda: Como animais de rapina, os quatro soldados
caíram sobre o Mestre e, rapidamente, principiaram a lhe
algemar as mãos e os pés. Por um momento os Sete
ficaram paralisados nos seus bancos, sem saber como
interpretar o que se passava diante deles — se era uma
farsa ou a vale. Micayon e Zamora foram os primeiros a
compreender que a terrível situação era real. Saltaram
sobre os soldados, como dois leões enfurecidos, e os
teriam derrubado, se não se tivesse feito ouvir a voz serena
e segura do Mestre.
MIRDAD: Deixai-os executar a sua arte, impetuoso
Micayon. Deixai-os fazer o que desejam, bom Zamora. As
algemas não assustam a Mirdad, como não o assustou o
Abismo Negro. Deixai que Shamadam se regozije em
remendar sua autoridade, com a do príncipe de Bethar. O
remendo despedaçará a ambos.
Micayon: Como podemos ficar impassíveis, quando nosso
Mestre está sendo algemado, como se fosse criminoso?
MIRDAD: Não fiqueis ansiosos por mim. Ficai em Paz. O
mesmo farão a vós algum dia; mas isso prejudicará a eles
e não a vós.
Príncipe: Assim será feito a todo velhaco e charlatão, que
tiver a ousadia de fingir que tem autoridade e direito
estabelecido.
Este santo homem (apontando para Shamadam) é de
direito o chefe desta comunidade, e a sua palavra deve ser
lei para todos. A Arca sagrada, de cuja generosidade
desfrutais, está sob a minha proteção. Os meus olhos
vigilantes pesquisam o seu destino; meu braço poderoso
está estendido por sobre o seu teto e suas propriedades;
minha espada decepará a mão que as tocar com má
intenção. Que todos o saibam e tenham cuidado.
Novamente o príncipe dirigindo-se a seus homens: Tirai
para fora este patife. Sua perigosa doutrina já quase
arruinou a Arca. Logo arruinará nosso reino e a terra, se
deixarmos que siga o seu perigoso curso. Vamos fazer
com que doravante a pregue às sombrias paredes da prisão
de Bethar. Fora com ele!
Naronda: Os soldados levaram o Mestre para fora,
seguidos, orgulhosamente pelo príncipe e por Shamadam.
Os Sete caminhavam atrás deste horrível procissão,
seguindo o Mestre, com os olhos, os lábios selados pela
dor, os corações transbordantes de lágrimas.
O Mestre caminhava, com passo firme e sereno e com a
cabeça levantada. Tendo se distanciado um pouco, olhou
para trás e disse:
MIRDAD: Ficai firmes com Mirdad. Não vos deixarei,
enquanto não lançar a minha Arca e vos entregar o
comando.
Naronda: E por muito tempo depois, estas palavras ainda
nos soavam aos ouvidos, acompanhadas do retinir das
correntes.
CAPÍTULO 29
Shamadam em vão tenta reconquistar os Companheiros.
Mirdad retorna Miraculosamente e dá a todos os
Companheiros, exceto a Shamadam beijo da fé.
Naronda: O inverno desceu sobre nós, copiosamente,
brando e mordente. As montanhas, envoltas em neve,
pareciam silenciosas e sem fôlego. Só os vales, lá em
baixo, mostravam algumas manchas verde-pálido, e aqui e
ali havia uma fita de prata líquida, que deslizava, coleante,
em direção ao mar.
Os Sete se sentiam, alternadamente, envolvidos por ondas
de esperança e de dúvida. Micayon, Micaster e Zamora se
inclinavam para a esperança de que o Mestre voltaria,
conforme havia prometido. Bennoon, Himbal e Abimar
agarravam-se à dúvida de que voltasse. Todos, porém,
sentiam uma terrível solidão e uma futilidade vexatória em
continuar ali.
A Arca estava fria, triste e inóspita. Um silêncio gelado
pairava no ar, como que se desprendendo de suas paredes,
desafiando os esforços desesperados de Shamadam, para
lhe dar vida e calor. Desde que Mirdad fora levado,
Shamadam procurou afogar-nos com sua bondade.
Ofereceu-nos os melhores alimentos e o mais rico vinho;
mas o alimento não dava sustento e o vinho não
estimulava. Queimava muita lenha e carvão; mas o fogo
não aquecia. Mostrava-se muito gentil e afetuoso; mas a
sua gentileza e afeição nos afastavam cada vez mais dele.
Durante muito tempo, evitou falar no Mestre. Afinal, abriu
seu coração e disse:
Shamadam: Vocês me julgam mal, meus companheiros, se
pensam que não gosto de Mirdad. Eu o lastimo de todo o
meu coração.
Mirdad pode não ser um homem mau; mas é um visionário
perigoso e sua doutrina é completamente impraticável e
falsa, neste mundo de fatos e práticas inflexíveis. Ele e os
que o seguirem terão um fim trágico, no seu primeiro
encontro com a dura realidade. Disso estou absolutamente
certo. E quero salvar os meus companheiros de tal
catástrofe.
Mirdad pode ter uma língua hábil, inspirada na irreflexão
da mocidade; mas seu coração é cego, teimoso e contra
Deus, ao passo que eu tenho o temor do verdadeiro Deus
em meu coração e a experiência dos anos para dar ao meu
julgamento peso e autoridade.
Quem poderia ter dirigido a Arca, durante tentos anos,
melhor do que eu? Não tenho eu vivido convosco, tanto
tempo, sendo para vós tanto irmão como pai? Não têm
nossas mentes sido abençoadas com a paz, e nossas mãos
com a superabundância? Por que permitir que um estranho
venha demolir aquilo que levamos tanto tempo para
construir, semear a desconfiança onde imperava a
confiança e a luta onde reinava a paz?
É completa loucura, meus companheiros, soltar o pássaro
que se tem na mão por dez que estão voando. Mirdad
queria fazer-nos deixar esta Arca, que por tanto tempo vos
obrigou e vos conservou perto de Deus, dando-vos tudo
que um mortal pode desejar e mantendo-vos seguros, à
margem do tumulto e da agonia do mundo. Que vos
prometia ele em troca? Sofrimento, desilusões e pobreza,
com uma luta sem fim, de quebra — isso e muitas coisas
piores é o que vos prometia.
Prometia-vos uma Arca nos ares, na vastidão do nada —
sonho de um louco — fantasia de criança — uma linda
impossibilidade. É ele, por acaso, mais sábio do que o pai
Noé, o fundador da Arca-Mãe? Dói-me ver que dais
atenção às suas loucuras.
Posso eu ter pecado contra a Arca e suas sagradas
tradições, quando apelei, contra Mirdad, para o braço forte
do meu amigo, o príncipe de Bethar, mas tinha no coração
o cuidado pelo vosso bem-estar; e só isso justificaria a
minha transgressão. Quis salvar-vos e salvar a Arca antes
que fosse muito tarde. Deus estava comigo e eu vos salvei.
Regozijai-vos comigo, companheiros, e agradecei ao
Senhor por nos ter poupado a ignonímia de ver, com
nossos olhos pecaminosos, a destruição de nossa Arca. Eu,
por mim, não sobreviveria a essa vergonha.
Agora, porém, eu me dedico, novamente ao serviço do
Deus de Noé e à sua Arca, e ao vosso Serviço, meus
amados companheiros. Sede felizes como antigamente,
para que a minha felicidade se complete em vós.
Naronda: Shamadam chorou ao pronunciar estas palavras
e causavam pena as suas lágrimas, pois sentia-se só, visto
que elas não encontravam repercussão em nossos olhos,
nem em nossos corações.
Certa manhã, quando o sol começou a mostrar-se por
cimas da montanha, depois de termos estado sitiados,
bastante tempo, por uma atmosfera úmida e fria, Zamora
apanhou a sua harpa e se pôs a cantar:
Zamora:
A canção está gelada nos lábios frios de minha harpa.
E congelado está o sonho no coração
imobilizado pelo gelo de minha harpa.
Onde está o alento que vai degelara tua canção,
ó minha harpa?
Onde está a mão que vai salvar o sonho,
ó minha harpa?
Vento mendigo, vai e pede para mim uma canção
às cadeias na prisão de Bethar.
Raio de sol matreiro, vai e furta para mim um sonho
das cadeias na prisão de Bethar.
As asa de minha águia estavam abertas no céu,
e debaixo delas eu era rei.
Agora sou apenas peregrino e órfão.
E a coruja domina o meu céu, pois minha águia voou
para um ninho distante: À prisão de Bethar.
Naronda: Uma lágrima soltou-se dos olhos de Zamora e
suas mãos caíram imóveis. Sua cabeça pendeu sobre a
harpa. Essa lágrima pôs em ação nossa tristeza reprimida e
abriu as comportas de nossos olhos.
Micayon se pôs de pé de um salto e gritando: “Morro
sufocado!”, abriu a porta e saiu para o ar livre. Zamora,
Micaster e eu o seguimos para o pátio, até o portão de
nossa clausura externa, além da qual não era permitido aos
companheiros passar. Micayon puxou o pesado ferrolho
com um forte safanão, abriu o portão de par em par e saiu
como um tigre que foge de sua jaula. Os outros três
seguiram Micayon.
O sol estava quente e brilhante, e seus raios, refletidos pela
neve gelada, quase cegavam. Montanhas despidas de
árvores e cobertas de neve ondulavam, diante de nós, até
onde a vista podia alcançar e pareciam incendiadas numa
orgia de luz. Em toda volta, reinava um silêncio tão
profundo, que parecia incomodar os ouvidos; só a neve,
que se partia sob os nossos pés, quebrava aquela solidão.
O ar, embora gélido, de tal modo nos acariciava os
pulmões que sentíamos com se neles penetrasse sem
esforço de nossa parte.
Até mesmo a atitude de Micayon mudou, quando ele
parou para exclamar: “Como é bom poder respirar. Ah!
somente respirar!”. De fato, parecia que era a primeira vez
que sentíamos a alegria de respirar livremente, e que
compreendíamos o sentido da Respiração.
Havíamos andado um pouco, quando Micaster divisou um
objeto escuro, numa elevação longínqua. Alguns pensaram
ser um lobo solitário, outros supuseram ser uma pedra
limpa da neve pelo vento. Mas o objeto se movia em nossa
direção e decidimos caminhar ao seu encontro. Cada vez
mais ele se aproximava e cada vez mais assumia uma
aparência humana. Subitamente, Micayon deu um grande
salto para frente, gritando, ao saltar: “É ele! É ele!”
E era ela — com seu andar firme, sua atitude elevada, com
sua nobre cabeça levantada. O vento suave ondulava sua
roupa folgada e balançava-lhe os cabelos compridos. O sol
dava um tom rosado ao seu rosto moreno-âmbar, mas os
olhos escuros e sonhadores cintilavam como sempre, e
enviavam ondas de amor sereno e triunfante. Seus pés
macios, protegidos por sandálias de madeira, eram
beijados pelo orvalho que os deixava rosados pelo frio.
Micayon foi o primeiro a ir ao seu encontro; atirou-se a
seus pés. Chorando e rindo, como alguém que delira,
exclamava: “Agora minha alma voltou ao meu corpo”.
Os outros três fizeram o mesmo; mas o Mestre os ergueu
um a um, abraçando-os com infinita ternura, ao mesmo
tempo em que dizia:
MIRDAD: Recebei o beijo da Fé. De hoje em diante, vós
dormireis crendo e despertareis crendo; a Dúvida não mais
fará ninho em vossos travesseiros, nem paralisará os
vossos pés com hesitação.
Naronda: Os quatro, que haviam permanecido na Arca, ao
verem o Mestre à porta, julgaram-no a princípio uma
aparição e ficaram muito assustados. Quando porém, ele
os saudou, cada um pelo seu nome e ouviram a sua voz,
precipitaram-se aos seus pés, exceto Shamadam que ficou
colado à sua cadeira. O Mestre falou e agiu com os três
conforme havia falado e agido com os quatro lá fora.
Shamadam olhava, pálido e tremia da cabeça aos pés. Sua
palidez cada vez aumentava mais, seus lábios se torciam e
suas mãos buscavam algo na sua cinta. Subitamente,
escorregou da cadeira e, engatinhando, chegou ao lugar
em que o Mestre se encontrava de pé, passou os braços em
volta dos pés de Mirdad e disse, convulsivamente, com o
rosto voltado para o solo: “Também eu creio”. O Mestre o
fez levantar-se também, mas sem o beijar, e lhe disse;
MIRDAD: É o Medo que faz tremer o corpo forte de
Shamadam e obriga a sua língua a dizer: “Também eu
creio”.
Shamadam treme e se curva diante da “magia” que tirou
Mirdad do Abismo Negro e da prisão de Bethar. E
Shamadam teme represália. Que a sua mente fique à
vontade, quanto a isso, para que possa voltar seu coração
na direção da Verdadeira Fé.
A fé que nasce de uma onda de Medo é somente a espuma
do Medo; levanta-se e desaparece com o Medo. A
Verdadeira Fé não floresce a não ser no caule do Amor.
Seu fruto é a Compreensão. Se tens medo de Deus, não
crês em Deus.
Shamadam (afastando-se, sempre com os olhos voltados
para o chão): Shamadam é um desgraçado e um exilado
em sua própria casa. Permiti que eu, finalmente seja servo
por um dia e vos traga um pouco de carne e alguma roupa
quente. Deveis estar com muita fome e com muito frio.
MIRDAD: Tenho carne que as cozinhas não conhecem, e
calor que não é emprestado pela lã fiada ou pelas línguas
do fogo. Bom seria que Shamadam armazenasse mais da
minha carne e do meu calor e menos dos outros
mantimentos e combustíveis.
Vede! O mar veio passar o inverno nas alturas. E as alturas
sentem-se alegres, por usarem o mar gelado como uma
capa. E as alturas sentem-se quentes, na sua capa.
Também o mar se sente alegre, por descansar quieto e
encantado nas alturas; mas somente por algum tempo, pois
a Primavera chegará e o Mar, como uma serpente que
hiberna, se desenrolará e exigirá a sua liberdade
hipotecada. Novamente correrá de praia em praia e
novamente subirá aos ares e vagará pelo céu e choverá
onde lhe aprouver.
Mas há homens como tu, Shamadam, cuja vida é inverno
constante e uma hibernação perene. São aqueles que ainda
não receberam o encantamento da Primavera. Vê! Mirdad
é o encantamento, Mirdad é um encantamento de Vida e
não um feitiço de morte. Quanto tempo, ainda ficará
hibernando?
Crê, Shamadam, que a vida que os homens vivem e a
morte que eles morrem é apenas uma hibernação. E eu
venho para despertar os homens do seu sono e chamá-los
de suas cavernas e de suas tocas para a liberdade da Vida
sem morte. Crê, para teu bem, e não para o meu.
Naronda: Shamadam permaneceu imóvel e não lhe disse
uma palavra. Bennoon sussurrou-me que perguntasse ao
Mestre como conseguira escapar da prisão de Bethar; mas
minha língua não me obedecia para fazer a pergunta que,
não obstante, foi logo adivinhada pelo Mestre.
MIRDAD: A prisão de Bethar já não é mais prisão;
tornou-se uma ermida. O príncipe de Bethar já não é mais
um príncipe. Ele é, hoje, um peregrino esperançoso como
vós.
Mesmo uma prisão, Bennoom, pode ser transformada em
um brilhante farol. Mesmo um orgulhoso príncipe pode
ser levado a depor a sua coroa, diante da coroa da
Verdade. E até as cadeias que rangem podem vir a tocar
música celeste. Nada é milagre para a Sagrada
Compreensão, que é o único milagre.
Naronda: As palavras do Mestre, referentes à abdicação do
príncipe de Bethar, caíram como um raio sobre
Shamadam; e, para nossa consternação, ele foi
subitamente presa de convulsões tão estranhas e tão
violentas que tememos seriamente pela sua vida. Afinal, as
convulsões terminaram com uma síncope, e deu-nos muito
trabalho, antes que tivéssemos conseguido fazê-lo voltar a
si.
CAPÍTULO 30
O Mestre revela o sonho de Micayon.
Naronda: Durante um longo período, antes e depois do
Mestre voltar de Bethar, observamos que Micayon se
comportava como quem se achasse em dificuldades.
Conservava-se à parte, quase todo tempo, falando pouco,
comendo pouco e raramente saindo de sua cela. Não
confiava, nem em mim, o seu segredo. E todos nós nos
admirávamos de que o Mestre nada fizesse para suavizarlhe
a dor, conquanto o amasse muito.
Certa vez, enquanto Micayon e outros estavam aquecendose
ao braseiro, o Mestre começou a discursar sobre a
Grande Nostalgia.
MIRDAD: Um homem certa vez sonhou. Eis como foi o
seu sonho: Ele se viu sobre a verde margem de um largo e
profundo rio, cujas águas deslizavam silenciosamente. Na
margem havia uma multidão de homens, mulheres e
crianças de todas as idades e idiomas; todos eles tinham
rodas de vários tamanhos e cores que rodavam
incessantemente, para cima e para baixo, pela margem. E
as multidões estavam vestidas de cores festivas e ali
estavam para se divertirem e festejarem. O ruído alegre
que faziam, enchia o ar. Como se fosse um mar
incansável, subiam e desciam, iam e voltavam.
Somente ele não estava vestido para a festa, pois nada
sabia de festa alguma. E só ele não tinha roda alguma para
rodar. E por mais que apurasse os ouvidos não conseguia
entender uma só palavra do que dizia a multidão poliglota
que falava algo semelhante ao seu próprio dialeto. E por
mais que alongasse a vista, não conseguia encontrar um
único rosto que lhe fosse familiar. E, além disto, a
multidão, à medida que se acercava dele, lançava-lhe
olhares significativos, como se estivesse a dizer: “Quem é
esse indivíduo cômico?”. Subitamente, porém, ele
compreendeu que a festa não era dele e que era a ela
inteiramente estranho; sentiu uma dor no coração.
Eis que ouviu um grande ruído que vinha da extremidade
superior da margem e logo viu que a multidão se
ajoelhava, cobria os olhos com as mãos e curvava a
cabeça, abrindo alas e deixando no centro uma faixa
estreita desimpedida e paralela ao rio. Só ele ficou de pé,
no meio desta faixa, sem saber para que lado voltar-se.
Quando olhou para ver de onde vinha o tremendo ruído
que se fazia, divisou um enorme touro que, cuspindo fogo
pela boca e pelas ventas, corria pela faixa com a
velocidade de um raio. Aterrorizado, olhou para a fera
enlouquecida e procurou uma saída, à esquerda e à direita,
porém não conseguiu encontrá-la. Sentia-se preso ao solo
e estava certo de não sobreviver.
Justamente no momento em que o touro chegava tão perto
do homem que este já lhe sentia devorador e o fumo
asfixiante, sentiu-se elevado no ar. O touro permanecia em
terra, por baixo dele, atirando para cima mais fogo e fumo;
mas ele se elevava cada vez mais, e embora sentisse o
calor do fogo e o fumo, começou a compreender que o
touro já não lhe podia fazer mal algum e a confiar em que
de fato não faria. E voltou-se para atravessar o rio.
Olhando para a verde margem viu o povo ainda ajoelhado
como antes e o touro atirando flechas em vez de fogo e
fumaça. Ouvia o sibilar das flechas que passavam por
perto dele, algumas furavam-lhe as roupas, mas nenhuma
delas lhe tocou a carne. Finalmente o touro, a multidão e o
rio se perderam de vista e o homem continuou voando.
Passou voando por sobre uma gleba de terra ressecada na
qual não havia o menor sinal de vida. Afinal desceu no
sopé de uma alta e escarpada montanha desolada na qual
não havia uma só folha de capim e nem mesmo uma
lagartixa ou formiga. E sentiu como se o seu único rumo
fosse montanha acima.
Por muito tempo procurou um caminho seguro para subir,
mas a única via de acesso que encontrava era uma trilha,
que mal se podia ver, e pela qual parece que só as cabras
poderiam subir. Decidiu-se a seguir essa trilha.
Mal tinha ele caminhado uma vintena de jardas, percebeu,
não longe, à esquerda, uma estrada larga e macia. Tão
logo parou e se dispôs a abandonar a trilha, a estrada se
transformou em um rio humano. A metade dos entes
humanos que o compunham subia com grande esforço,
enquanto que a outra metade rolava pela encosta abaixo.
Um número imenso de homens e mulheres lutava para
subir e rolava para baixo, às cambalhotas, soltando
gemidos e gritos que cortavam o coração.
O homem observou por algum tempo aquele pavoroso
fenômeno e chegou à conclusão de que, em algum ponto
daquela montanha, existia um enorme hospício e que
aqueles que vinham rolando eram alguns dos internos que
haviam fugido. E continuou pela trilha, caindo e
levantando-se de novo de quando em quando, mas sempre
progredindo rumo ao alto.
A uma certa altura, o rio humano secou e o seu leito
desapareceu por completo. Mais uma vez o homem se
encontrava só com a montanha e não havia um dedo
estendido que lhe apontasse o caminho ou voz alguma que
estimulasse a sua coragem, que sentia enfraquecer, ou que
reanimasse as suas forças, que se estavam esvaindo, a não
ser uma vaga fé de que seu caminho apontava para o alto.
E lá ia ele, vagarosamente, traçando com sangue a sua
vereda. Depois de muito esforço, por caminho áspero e
duro, chegou a um ponto em que a terra era macia e não
havia pedras. Para sua indescritível alegria, viu alguns
delicados tufos de capim crescendo aqui e ali; e a grama
era tão delicada, tão tenra, o solo tão aveludado, o ar tão
perfumado e repousante que se sentiu como se lhe
houvessem roubado a última gota de energia. Relaxou os
músculos e caiu a dormir.
Foi despertado pela mão de alguém que o tocava e por
uma voz que lhe dizia: “Levanta-te! O pico da montanha
está à vista. E a Primavera aguarda-te lá em cima”.
A mão e a voz eram de uma belíssima donzela — um ser
paradisíaco — vestindo roupa de ofuscante brancura.
Amavelmente, o tomou pela mão e ele sentiu-se
revigorado e invadido por extraordinário bem estar.
Realmente pôde ver o alto da montanha e sentir o aroma
da Primavera. Mal, porém, se pôs de pé para dar o
primeiro passo, despertou do sonho.
Que faria Micayon se despertasse de um sonho como esse
e se encontrasse deitado em uma cama comum, encerrado
entre quatro paredes comuns, porém com a imagem da
donzela ainda a lhe brilhar nos olhos e sentindo ainda no
coração a fragrante resplandecência do alto da montanha?
Micayon (como quem foi espicaçado): Mas esse sonhador
sou eu e esse foi o sonho que tive. Inclusive a visão da
donzela de branco e do alto da montanha. Isso me vem
perseguindo até hoje e não me dá sossego. Faz com que eu
me sinta estranho a mim mesmo. Por causa disso,
Micayon já não conhece mais Micayon.
No entanto, tive esse sonho logo depois que fostes levado
para Bethar. Como podeis vir relatá-lo com todos os seus
pormenores? Que espécie de homem sois, que até os
sonhos dos homens são, para vós, um livro aberto?
Ah! que liberdade havia no pico daquela montanha! E
como era linda aquela donzela! Como tudo aqui é vulgar
em comparação! Senti-me como se tiverrs perdido minha
própria alma devido ao sonho. E somente no dia em que
vos vi, voltando de Bethar, senti que me voltava a alma e
me senti calmo e forte. Mas esta sensação tornou a
abandonar-me e tornei a ser separado de mim mesmo, por
um incrível cordão.
Salvai-me, ó meu Grande Companheiro. Estou me
consumindo por causa de uma visão.
MIRDAD: Não sabes o que pedes, Micayon. Queres ser
salvo do teu Salvador?
Micayon: Quero ser poupado a esta insuportável tortura,
de me sentir tão sem lar, em um mundo tão confortável.
Gostaria de estar no alto da montanha com aquela jovem.
MIRDAD: Regozija-te porque o teu coração se tornou
presa da Grande Nostalgia, pois essa é a promessa
irrevogável de que encontrarás a tua pátria e teu lar e que
estarás no alto da montanha com a jovem.
Abimar: Por favor, contai-nos mais alguma coisa sobre
esta Nostalgia. Quais são os sintomas pelos quais a
podemos reconhecer?
CAPÍTULO 31
A Grande Nostalgia.
MIRDAD: É como a neblina a Grande Nostalgia. Emitida
pelo coração, ela fecha o coração; assim como a neblina
emitida pelo mar oblitera tanto a terra como o mar.
E também a neblina oculta aos olhos a realidade visível,
tornando-se ela própria a única realidade. Assim esta
Nostalgia abafa os sentimentos do coração e faz de si
mesma o sentimento predominante. E embora
aparentemente seja tão sem forma, tão sem propósito e tão
cega como a neblina, coma esta, ela está cheia de formas
ainda não realizadas, é clara à vista e tem uma finalidade
bem definida.
É ainda como a febre a Grande Nostalgia. Como a febre,
que surge no corpo e mina a vitalidade deste, enquanto lhe
está queimando os venenos, assim é a Nostalgia, nascida
do atrito no coração; debilita este, enquanto lhe consome
as impurezas e toda superfluidade.
E como um ladrão é a Grande Nostalgia. Como o ladrão
furtivo, que alivia sua vítima de uma carga, porém o deixa
aborrecido e amargurado, assim esta Nostalgia
furtivamente alivia todas as cargas do coração, porém o
deixa desolado e pesado, exatamente pela falta de carga.
Larga e verde é a margem em que dançam os homens e as
mulheres, e lutam e choram pelos seus dias que se
transformaram em nada. Aterrorizante, porém, é o Touro
que expele fogo e fumaça pelas ventas e que lhes faz
tremer os pés e os obriga a cair de joelhos; que lhes abafa
as canções na garganta e lhes prega as pálpebras aos olhos
nas suas próprias lágrimas.
Largo e profundo também é o rio que os separa da outra
margem. E eles não o podem atravessar a nado, nem remar
de uma à outra margem, e nem atravessá-lo num barco a
vela. Poucos, muito poucos, se aventuram a atravessá-lo
com um pensamento. Quase todos, porém, estão ansiosos
por se agarrarem à margem em que se encontram e na qual
cada um deles anda a fazer rodar a sua roda predileta do
Tempo.
O homem que tem a Grande Nostalgia não possui
nenhuma roda predileta do Tempo para rodar. No meio de
um mundo tensamente ocupado e terrivelmente apressado,
só ele não tem ocupação e nem pressa. Em meio à
humanidade tão decorosamente vestida e comportada,
quanto à palavra e às maneiras, ele se acha nu, gaguejante
e desajeitado. Não pode rir com os que riem, nem chorar
com os que choram. Os homens bebem e comem e sentem
prazer no comer e no beber; ele come sem gulodice e a
bebida se torna insípida em sua boca.
Outros se acasalam ou estão ansiosamente procurando
com quem se acasalem; ele anda sozinho, dorme sozinho e
sonha sozinho os seus sonhos. Os outros são ricos em
humor e sabedoria do mundo; só ele é estúpido e
ignorante. Os outros têm lugares confortáveis a que
chamam de lar. Os outros têm certos locais na terra aos
quais chamam sua terra natal e cuja glória cantam em alta
voz; só ele não tem nenhum pedaço de terra que possa
cantar ou chamar de terra natal. Isso porque tem os olhos
fitos na outra margem.
É um sonâmbulo o homem que tem a Grande Nostalgia,
no meio de um mundo aparentemente desperto.
É movido por um sonho que os outros a seu redor não
vêem nem sentem; por isso eles encolhem os ombros e
riem à socapa. Quando, porém, o deus do Medo — o
Touro que põe fogo e fumaça pelas ventas — aparece em
cena, então eles vão morder o pó da terra, enquanto aquele
para quem eles encolheram os ombros e de quem riram à
socapa é levantado pelas asas da Fé, acima de todos e do
Touro e é levado para a outra margem, para o sopé da
Montanha Escarpada. Árida, deserta e triste é a terra sobre
a qual o sonâmbulo voa. Mas as asas da Fé são fortes e o
homem continua voando.
Sombria, nua e terrificante é a montanha ao sopé da qual
ele aterrissa, mas indômito é o coração da Fé, e o coração
do homem continua batendo, valorosamente.
Dura, escorregadia e dificilmente visível é a sua trilha
montanha acima, mas macia é a mão, firme o pé e agudo o
olhar da Fé... e assim o homem sobe.
Encontra pelo caminho homens e mulheres que estão
tentando subir a montanha por uma estrada larga e suave;
são os homens e mulheres da Pequena Nostalgia, que estão
ansiosos por atingir o alto da montanha, porém com um
guia coxo e cego. Isso porque o seu guia é a sua crença no
que os olhos podem ver e os ouvidos ouvir; no que as
mãos podem apalpar e no que o nariz e a boca podem
cheirar e provar. Alguns deles não vão além dos
tornozelos da montanha; outros vão até os quadris; muitos
poucos vão até a cintura. Todos eles, porém, juntamente
com seus guias, escorregam e vêm às cambalhotas, ladeira
abaixo, sem terem ao menos, olhado de relance para o belo
alto da montanha.
Podem os olhos ver tudo o que há para ser visto e os
ouvidos ouvir tudo o que existe para ser ouvido? Podem as
mãos apalpar tudo o que há para ser apalpado e o nariz
cheirar tudo o que há para ser cheirado? Somente quando a
Fé, nascida da Imaginação divina vem ao seu auxílio,
podem os sentidos realmente sentir e desse modo se
tornarem escadas para a ascensão ao alto.
Os sentidos faltos de Fé são guias nos quais não se pode
confiar. Conquanto a sua estrada pareça suave e larga, está
cheia de armadilhas e laços escondidos e aqueles que por
ela tentam alcançar o cimo da Libertação perecem no
caminho ou escorregam e caem às cambalhotas ao sopé de
onde partiram, onde se lastimam de muitos ossos
quebrados e onde cosem muitos ferimentos abertos.
Os homens da Pequena Nostalgia são aqueles que, tendo
construído um mundo com os seus sentidos, logo o acham
pequeno e abafado e aspiram a um lar maior e mais
arejado. Mas ao invés de procurarem novos materiais e um
novo mestre de obras, empilham o mesmo material e
chamam o mesmo arquiteto — os sentidos — para lhes
construir o novo lar. E mal este está pronto, acham-no tão
pequeno e abafado quanto o velho. E assim vão demolindo
e construindo, sem jamais conseguirem o lar que lhes
possa dar o conforto e a liberdade que anseiam: eis que
confiam nos enganadores, para que os livrem dos enganos.
E como o peixe que salta da frigideira para o fogo, fogem
de uma pequena miragem, para serem iludidos por outra
maior.
Entre os homens da Grande Nostalgia e os da Pequena
Nostalgia está a grande multidão dos homens coelhos, que
não sentem Nostalgia alguma. Estão satisfeitos em cavar
as suas tocas, nelas viver, reproduzir-se e morrer; e acham
suas furnas muito elegantes, espaçosas e quentes. Não as
trocariam pelos esplendores de um palácio rela. E zombam
dos sonâmbulos, especialmente daqueles que caminham
por uma trilha solitária, onde as pegadas são raras e
difíceis de serem vista.
O homem que tem a Grande Nostalgia e se encontra entre
os outros homens, é muito semelhante ao filhote de águia
chocado pela galinha doméstica, junto com a sua ninhada.
Seus irmãos pintinhos e a mãe-galinha desejam que o
jovem filhote de águia seja tal como eles, com a sua
natureza e hábitos, vivendo como eles vivem; e o jovem
filhote de águia gostaria de que os outros fossem como
ele: sonhando com um ar mais livre e um céu ilimitado.
Logo, porém, seus irmãos de ninhada o consideram um
estranho e um paria entre eles, e ele recebe bicadas de
todos — até mesmo de sua mãe. A voz das alturas, porém,
lhe fala no sangue e a fedentina do galinheiro se torna
insuportável para o seu nariz. No entanto, aceita em
silêncio tudo aquilo, até que se encontre completamente
emplumado. Abre então as asas e se lança ao espaço, com
um amoroso olhar de despedida a seus antigos irmãos e a
sua mãe, que cacareja, alegremente, enquanto cisca na
terra em busca de sementes e vermes.
Alegra-te, Micayon. Teu sonho é um sonho profético. A
Grande Nostalgia fez o teu mundo pequeno e te fez um
estranho nesse mundo; libertou a tua imaginação da garra
despótica dos sentidos e a imaginação te trouxe a tua Fé.
E a Fé te levantará muito acima deste mundo estagnado e
abafado, levando-te através do cansativo vazio, ao alto da
Montanha Escarpada, onde toda fé terá que ser testada e
purificada dos últimos traços da Dúvida.
E a Fé assim purificada e triunfante te levará ao Alto
eternamente verde, e ali te entregará nas mãos da
Compreensão. Tendo cumprido a sua tarefa, a Fé se
retirará e a Compreensão guiará os teus passos à
impronunciável Liberdade do Alto, que é a verdadeira,
ilimitada e universal morada de Deus e do Homem
Liberto.
Suporta bem o teste, Micayon. Suportai-o bem, todos vós.
Permanecer por um momento nesse Alto, equivale a
suportar toda a espécie de dores. Mas residir para sempre,
nesse Alto, vale a Eternidade.
Himbal: Não nos elevarás agora ao teu Alto, ao menos
para um olhar rápido?
MIRDAD: Não tenhas pressa, Himbal; dá tempo ao
tempo. Onde eu respiro, livremente, tu ficarias sem ar.
Onde eu caminho, à vontade, tu ficarias ofegante e
tropeçarias. Agarra-te à Fé; a Fé realizará proezas
gigantescas.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
CAPÍTULO 32
Acerca do pecado e da retirada dos aventais de folha de
figueira.
MIRDAD: Já ouvistes falar o Pecado e agora deveis saber
como o Homem se tornou pecador.
E declarais — não sem mérito — que se o Homem, a
imagem e semelhança de Deus, é pecador, então Deus
mesmo deve ser a origem do Pecado. Existe aí uma
armadilha para o desavisado; e eu não quero,
companheiros, que sejais presos na armadilha. Por isso
vou retirá-la do vosso caminho, para que possais também
retirá-la dos caminhos dos homens.
Não há pecado em Deus, a não ser que consideremos
pecado dar do Sol algo de sua luz a uma vela. Nem há
pecado no Homem, a não ser que consideremos pecado
queimar-se uma vela inteiramente no Sol e assim juntar-se
ao Sol.
Há, porém, pecado na vela que se recusa a ceder a sua luz
e que, quando se aplica o fósforo a seu pavio, amaldiçoa o
fósforo e a mão que o segura. Há pecado na vela que tem
vergonha de se queimar no Sol e que, por isso, se oculta
do Sol.
O Homem não pecou por desobedecer à Lei, mas por
querer encobrir a sua ignorância da Lei.
Sim! Há pecado no avental de folha de figueira.
Não lestes a história da queda do Homem, tão simples e
ingênua nas palavras, porém tão sublime e sutil no seu
significado? Não lestes como o Homem, recém-saído do
seio de Deus, era como um Deus recém-nascido passivo,
inerte, não criador? Isso porque, embora dotado de todos
os atributos da divindade, era como todos os recémnascidos,
incapaz de conhecer e de exercitar sua infinitas
capacidades e talentos.
Como uma semente solitária encerrada em belíssimo
frasco, achava-se o Homem no Jardim do Éden. A
semente encerrada em um frasco, permanecerá semente e
jamais as maravilhas que nela se acham encerradas
debaixo da casca serão estimuladas para a vida e a luz, a
não ser que seja escondida num solo análogo à sua
natureza e que a casca seja rompida.
O Homem, porém, não possuía solo algum que lhe fosse
análogo onde pudesse plantar-se e brotar.
A sua face jamais encontrara outra face na qual pudesse
refletir-se. Era um ouvido humano que jamais ouvira outra
voz humana. Era uma voz humana que jamais tivera eco
em outra voz humana. Seu coração batia solitário.
Solitário, inteiramente solitário, encontrava-se o Homem
em meio a um mundo bem aparelhado e lançado ao seu
destino. Era um estranho para consigo mesmo; não tinha
trabalho a executar nem plano a seguir. O Éden, para ele,
era o que é para o recém-nascido um berço confortável —
um estado de bem-aventurança passiva; uma incubadeira
bem aparelhada.
A Árvore do conhecimento do Bem e do Mal e a arvora da
Vida estavam, ambas, ao seu alcance; ele porém, não
entendia a mão para escolher e provar dos seus frutos, pois
o seu paladar, seus pensamentos, seus desejos e até mesmo
sua vida estavam todos encerrados nele mesmo, esperando
para serem vagarosamente libertados. E ele, por si mesmo,
não os podia libertar. Conseqüentemente, fez-se com que
ele produzisse em auxiliar para si, a mão que o ajudasse a
desatar seus muitos envoltórios.
Onde melhor se poderia obter este auxílio se não no seu
próprio ser, tão rico devido à sua alta potência em
divindade? Isto é muito significativo.
Eva não é novo pó nem novo alenta; mas o mesmo pó e o
mesmo alento de Adão — ossos dos seus ossos e carne da
sua carne. Não surge outra criatura em cena; mas o mesmo
Adão solitário e duplicado — um Adão-masculino e um
Adão-feminino.
E assim o rosto solitário e sem reflexo obtém uma
companhia e um espelho; e o nome, sem eco em nenhuma
voz humana, principia a reverberar em doces estribilhos,
acima e abaixo pelas alamedas do Éden. O coração, cujo
palpitar solitário, principia a sentir o seu pulso e a ouvir
sua palpitação, em um coração companheiro e num peito
companheiro.
Assim o aço, sem faíscas, encontra o sílex que o fará
emitir faíscas em abundância. Assim a vela que não havia
sido acesa, é acesa em ambas as pontas.
Uma vela é um pavio, um é o pavio e uma a luz, embora
venha de ambas as pontas. E assim, a semente no frasco
encontra o solo onde possa germinar e revela os seus
méritos.
Assim a Unidade, inconsciente de si mesmo, obtém
Dualidade, para que, por meio da fricção e da oposição da
Dualidade, possa compreender a sua unidade. Nisso
também o Homem é a fiel imagem e semelhança de Deus,
pois Deus — a Consciência Original — projeta de Si a
Palavra, e tanto a Palavra como a Consciência são
unificadas na Sagrada compreensão.
Não é um castigo a Dualidade, mas um processo inerente à
natureza da Unidade e necessário para o desenvolvimento
da sua divindade. Como é infantil pensar de outro modo!
Como é infantil acreditar que um processo tão
maravilhoso possa terminar o seu curso em três vintenas
de anos mais dez, ou mesmo em três vintenas de milhões
de anos!
É tão pouco importante assim tornar-se um deus?
Será Deus um amo assim tão cruel e miserável que, tendo
toda a eternidade para presentear, não concedesse ao
Homem mais do que o pequenino intervalo de tempo de
setenta anos para que este se unificasse e readquirisse o
Éden, inteiramente consciente de sua divindade e de sua
unidade com Deus?
É longo o curso da Dualidade e tolos são aqueles que o
medem com calendários. A Eternidade não se mede pelas
revoluções das estrelas.
Quando Adão, o passivo, o inerte, o não criador, foi
tornado duplo, ele, conseqüentemente se tornou ativo,
cheio de movimento e capaz de criar e procriar-se.
Qual foi o primeiro ato de Adão depois de se tornar duplo?
Foi comer o fruto da árvore do Bem e do Mal e, desse
modo, fazer todo este mundo duplo como ele. As coisas
deixaram de ser como haviam sido: — inocentes e
indiferente. Estas se tornaram boas ou más, úteis ou
prejudiciais, agradáveis ou desagradáveis; tornaram-se
dois campos opostos, ao passo que antes era um.
E a serpente que enganou Eva para que provasse o Bem e
o Mal, não era a profunda voz ativa, embora inexperiente
da Dualidade, estimulando-se para a ação e a experiência?
Não admira que Eva fosse a primeira a ouvir essa voz e a
obedecê-la. Eva era como se fosse a pedra de afiar, o
instrumento destinado a tornar manifestos os poderes
latentes de seu companheiro.
Não estivestes vós, já muitas vezes, a imaginar esta
primeira Mulher, da primeira história humana,
caminhando furtivamente por entre as árvores do Éden,
com os nervos à flor da pele, com o coração palpitando
como o de um pássaro que caiu na armadilha, com os
olhos a procurar por todos os lados se alguém a estava
observando, com a boca úmida e a mão trêmula estendida
para a fruta? Não tendes suspendido a respiração ao
imaginardes que ela apanhou a fruta e fincou os dentes na
polpa macia para sentir-lhe momentaneamente a doçura
que se teria de transformar em amargura eterna para ela e
sua prole? Não tendes desejado, de todo coração, que
Deus paralisasse a audácia louca de Eva , aparecendo-lhe
no momento exato em que ela estava para cometer aquela
ação estouvada e não depois, com Ele o faz na lenda? E
tendo ela cometido aquele ato, não tendes desejado que
Adão tivesse a sabedoria e a coragem de abster-se de se
tornar seu cúmplice?
No entanto, nem Deus interveio, nem Adão se absteve.
Isso porque Deus não queria que sua semelhança se lhe
tornasse dissemelhante. Era Sua vontade e Seu plana que o
Homem caminhasse o longo caminho da Dualidade a fim
de desenvolver sua própria vontade, planejar e unificar-se
pela Compreensão. Quanto a Adão, ele não poderia,
mesmo que quisesse, rejeitar o fruto que lhe era oferecido
por sua esposa. Era-lhe obrigatório comê-lo, simplesmente
porque sua esposa havia comido dele, pois ambos eram
uma carne e cada qual era responsável pelos atos do outro.
Indignou-se e irou-se Deus porque o Homem comeu o
fruto do Bem e do Mal? Deus o proibira. E o fez porque
sabia que o Homem não podia deixar de comer e Ele
queria que o Homem o comesse; queria também que o
Homem soubesse antecipadamente as conseqüências de
comê-lo e tivesse a coragem de arcar com tais
conseqüências. E o Homem teve coragem. E o Homem
comeu. E o Homem arcou com as conseqüências.
E a conseqüência foi a Morte. Ao se tornar ativamente
Dual pela vontade de Deus, morreu para a unidade
passiva. Logo a Morte não é castigo, mas uma fase na vida
inerente à Dualidade. A natureza da Dualidade é tornar
todas as coisas duais e dar a tudo uma sombra. E assim
Adão adquiriu sua sombra em Eva e ambos obtiveram, em
suas vidas, uma sombra chamada Morte. Mas Adão e Eva,
embora sombreados pela Morte, continuam a ter uma vida
sem sombras na vida de Deus.
A Dualidade é uma fricção constante; e a fricção dá a
ilusão de duas superfícies que se opõem, inclinadas à
autodestruição. Realmente estão se completando,
preenchendo e trabalhando de mãos dadas por um só
objetivo: a paz perfeita, a unidade e o equilíbrio da
Sagrada Compreensão. A ilusão, porém, está enraizada
nos sentidos e persiste, enquanto estes persistem.
Eis porque Adão respondeu a Deus, quando Deus o
chamou, depois dos seus olhos terem sido abertos: “Eu
ouvi a tua voz no jardim e eu tive medo porque eu estava
nu e eu me escondi”. Como também “a mulher que tu me
deste para minha Companheira, ela me deu do fruto da
árvore e eu o comi”.
Eva não era mais do que carne e ossos de Adão. Pensai,
porém, neste novo Eu de Adão, o qual depois de seus
olhos terem sido abertos, principiou a se ver como algo
diferente, separado e independente de Eva, de Deus e de
toda criatura de Deus.
Este Eu era uma ilusão. Uma ilusão dos olhos recémabertos
era esta personalidade desligada de Deus. Não
tinha substância nem realidade. Havia sido criada para
que, após a sua morte, o Homem pudesse conhecer o seu
Ser real que é o Ser de Deus. Este eu falso desaparecerá
quando os olhos externos se apagarem e o olho interno for
iluminado. Embora isto deixasse Adão confuso, servia
para estimular a sua mente e espicaçar a sua imaginação.
Ter um Eu que se possa considerar inteiramente pessoal é
verdadeiramente muito lisonjeiro e tentador para o
Homem, que não é consciente de nenhum Eu.
A Adão foi tentado e lisonjeado pelo seu Eu ilusório.
Embora estivesse envergonhado dele, por ser muito irreal
ou nu, dele não queria separar-se; ao contrário, agarrava-se
a ele de todo coração e com toda a sua engenhosidade
recém-nascida. Por isso costurou folhas de figueira e fez
para si um avental, com que escondesse a nudez de sua
personalidade, tentando conservar-se oculto da vista
Onipresente de Deus.
E desse modo o Éden, o estado de bem-aventurada
inocência, a unicidade inconsciente de si mesma, caiu do
Homem dual, revestido de aventais de folhas de figueira; e
espadas de fogo foram postas entre ele e a Árvore da Vida.
O Homem saiu do Éden pelo duplo portão do Bem e do
Mal; a ele voltará pelo portão singelo da Compreensão.
Retirou-se dando as costas à Árvore da Vida; voltará com
o rosto voltado para essa Árvore. Iniciou a sua longa e
penosa viagem, envergonhado de sua nudez e tendo o
cuidado de esconder a sua vergonha; chegará ao fim de
sua viagem com a sua pureza sem aventais e o coração
ufano de sua nudez.
Isso, porém, não se dará enquanto o Homem não seja, pelo
Pecado, liberto do Pecado, pois o Pecado será a própria
ruína do Pecado. E onde está o Pecado senão no avental de
folhas de figueira?
Sim, o Pecado nada mais é do que a barreira que o
Homem coloca entre ele próprio e Deus — entre o seu Eu
transitório e o seu EU eterno.
A princípio, um punhado de folhas de figueira, essa
barreira veio a tornar-se um poderoso baluarte. Desde o
momento em que abandonou a inocência do Éden, o
Homem tem estado ocupadíssimo em reunir cada vez mais
folhas de figueira e a costurar um sem número de aventais.
Os indolentes se satisfazem em remendar os rasgões de
seus aventais com os trapos abandonados pelos seus
próximos mais trabalhadores. E cada remendo na
indumentária do Pecado é pecado, pois tende a perpetuar a
vergonha que foi o primeiro e pungente sentimento que
teve após separar-se de Deus.
Está o Homem fazendo algo para livrar-se desta vergonha?
Não! Todo seu esforço é vergonha sobre vergonha,
aventais sobre aventais.
Que são as artes e a instrução do Homem, senão folhas de
figueira?
Seus impérios, nações, segregações raciais e religiões, na
vereda da guerra, não são cultos de adoração à folha de
figueira?
Seus códigos do bem e do mal, de honra e desonra, de
justiça e de injustiça; seus incontáveis credos sociais e
suas convenções, que são, senão aventais de folhas de
figueira?
O seu avaliar o inavaliável e medir o imensurável e
padronizar aquilo que está além do padronizável, não é
remendar a já ultra-remendada tanga?
A sua avidez pelos prazeres que estão pejados de
sofrimento; sua ambição pelas riquezas que empobrecem;
sua sede pelo mestrado que subjuga; a sua cobiça pela
grandeza que achincalha — não são todas essas coisas
aventais de folhas de figueira?
Nesta corrida patética para cobrir a sua nudez, o Homem
vestiu um grande número de aventais que, no correr dos
anos, agarraram-se tão fortemente à sua pele que ele já não
distingue os aventais da sua pele. E o Homem se sente
sufocado e clama por quem o liberte de tantas peles. No
entanto, em seu delírio, o Homem tudo faz para ser
libertado de sua carga, menos aquilo que o poderia aliviar
e que seria atirar fora essa carga. Ele quer libertar-se de
sua carga e se agarra a ela, com todas as suas forças.
Deseja estar nu e, no entanto, se mantém completamente
vestido.
É chegada a hora de se despir. E eu vim para vos auxiliar a
lançar fora vossas peles desnecessárias — vossos aventais
de folhas de figueira — para que assim possais também
auxiliar a todos aqueles que anseiam por se verem livres
dos seus. Eu só ensino como fazê-lo, mas cada qual terá
que se livrar dos seus, por mais doloroso que lhe seja o
despir-se.
Não espereis por nenhum milagre, que vos salve de vós
próprios, nem receeis a dor; a Compreensão nua
converterá vossa dor em um perene êxtase de alegria.
Se vós enfrentardes a vós próprios, na nudez da
Compreensão, e se Deus vos chamar e perguntar: “Onde
estais?” — não vos envergonheis, nem temais, nem vos
oculteis de Deus. Mas, ao contrário, deveis permanecer
firmes, sem receio e divinamente calmos, respondendo a
Deus:
“Segura-nos, Senhor Deus — nossa alma, nosso ser, nosso
único Eu. Envergonhados, medrosos e sofrendo dores,
caminhamos pela áspera e tortuosa vereda do Bem e do
Mal que Tu nos apontastes na aurora do Tempo. A Grande
Nostalgia apressou os nossos passos e a Fé sustentou os
nossos corações, e agora a Compreensão nos libertou de
nossas cargas, curou as nossas feridas e nos trouxe de
volta à Tua Santa Presença, nus do Bem e do Mal, da Vida
e da Morte; nus de todas as ilusões da Dualidade, nus
exceto do manto do vosso Ser que tudo envolve. Sem
folhas de figueira para esconder a nossa nudez, aqui
estamos diante de Ti, livres da vergonha, iluminados e
sem temor. Toma-nos, estamos unificados. Toma-nos,
realizamo-nos”.
E Deus vos abraçará, com infinito Amor, e vos levará
diretamente à Sua Árvore da Vida.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
Naronda: Também isso nos foi dito pelo Mestre à volta do
braseiro.
CAPÍTULO 33
Acerca da noite — a cantora incomparável.
Naronda: Como o exilado sente saudades de seu lar, assim
tínhamos nós saudades do Ninho da Águia que os ventos
gelados e as tempestades de neve haviam tornado
inacessível durante todo o inverno.
O Mestre escolheu uma noite de Primavera, cujos olhos
eram suaves e brilhantes, cujo alento era cálido e
perfumado, cujo coração palpitava rápido e desperto para
nos levar ao Ninho da Águia.
As oito pedras planas que nos serviam de bancos ainda
estavam dispostas, exatamente no mesmo semicírculo, tal
como as havíamos deixado no dia em que o Mestre fora
levado a Bethar. Era evidente que ninguém visitara o
Ninho da Águia desde esse dia. Cada um de nós tomou o
seu lugar costumeiro e ali ficou à espera de que o Mestre
falasse. Ele, porém não abria a boca. Até mesmo a lua
cheia, que nos mirava para desejar-nos boas vindas,
parecia presa aos lábios do Mestre.
As cachoeiras da montanha, despenhando-se de pedra em
pedra, enchiam a noite com as suas turbulentas melodias.
De quando em quando, o pio sinistro de uma coruja ou a
canção rascante de algum grilo chegavam aos nossos
ouvidos.
Durante muito tempo permanecemos em silêncio, antes
que o Mestre levantasse a cabeça e, abrindo seus olhos
semicerrados, principiasse a nos falar:
MIRDAD: Neste silêncio que agora reina, Mirdad gostaria
que ouvísseis as canções da Noite. Prestai ouvidos ao coro
da Noite, que a Noite é, realmente, uma cantora
incomparável.
Dos mais escuros esconderijos do passado, dos mais
luminosos castelos do futuro, dos pináculos dos céus e das
profundidades da terra, as vozes da Noite se desprendem e
voam até os mais recônditos lugares do universo. Em
poderosas ondas elas rolam e giram em volta dos vossos
ouvidos. Descarregai completamente os ouvidos para que
as possais ouvir bem.
Aquilo que o Dia, alvoroçada e despreocupadamente
apaga, a Noite restaura com sua extraordinária magia. Não
se escondem a lua e as estrelas do ofuscamento do Dia?
Aquilo que o Dia afoga na sua fantasiosa simulação, a
Noite exalta nas suas extáticas canções. Até mesmo os
sonhos das plantas ampliam o coro da Noite:
Apurai vossos ouvidos às esferas
Que cantam pelo céu afora.
Ouvi suas cantigas de ninar
Para o nenê gigante que dorme
No seu berço de areias movediças,
Para o rei dos mendigos vestidos de trapos,
Para o corisco agrilhoado,
Para o deus envolto em faixas.
Escutai a Terra que ao mesmo tempo dá à luz,
Amamenta, cria, faz casar e enterra.
Escutai as feras rondando, na floresta;
Répteis, rastejando pela sela;
Insetos zunindo suas canções místicas,
Pássaros ensaiando, em seus sonhos,
Contos dos prados, cantigas dos regatos;
Árvores e arbustos e tudo que respira
Sorvendo a vida na taça da morte.
Do alto da montanha e do vale;
Do deserto e do mar;
Do ar e debaixo da relva
Lança-se um desafio ao Deus velado pelo Tempo.
Escutai as mães do mundo, —
Como choram, como se lamentam;
E os pais do mundo, —
Como gemem, como se afligem.
Escutai como seus filhos correm
Para o canhão e do canhão,
Censurando Deus e amaldiçoando o Destino,
Fingindo Amor e respirando ódio,
Bebendo devoção e suando medo,
Semeando sorrisos e colhendo lágrimas,
Estimulando com seu sangue vermelho
A fúria do dilúvio que se prepara.
Escutai como os seus estômagos encolhem
E as suas pálpebras inchadas piscam,
E os seus dedos mirrados vãos às apalpadelas
Buscando a carcaça da esperança;
E seus corações se distendem e rebentam
De monte em monte e de pilha em pilha.
Escutai os motores satânicos zumbir
E as grandes cidades ruir;
As poderosas cidadelas
Dobrarem os sinos de seus próprios funerais;
E os monumentos do passado
Cair nos atoleiros de lama.
Escutai as orações do justo
Soando, alegremente, em sintonia com os gritos de
luxúria.
E o balbuciar sem arte da criança
Em rapsódia com o perverso tagarelar,
O sorriso envergonhado da donzela
Gorjeando com a astúcia da prostituta;
E o êxtase do valente
Cantarolar as maquinações do velhaco.
Em todas as tendas e choças de todas as tribos e clãs,
As trombetas noturnas executam o hino de guerra do
Homem.
Mas a Noite, a feiticeira, funde as canções.
Os desafios, os hinos de guerra e tudo o mais,
Em canção, demasiado sutil, para ser ouvido.
Canção tão grandiosa, tão infinita no compasso,
De tão profundo tom, tão melodioso coro,
Que até o coro e sinfonia dos anjos,
Em comparação, não passam de ruído e murmúrio.
Essa é a canção de triunfo do Homem Liberto.
As montanhas cochilando no regaço da Noite;
Os desertos reminiscentes com suas dunas;
Os vales sonâmbulos, as estrelas errantes,
Os habitantes nas cidades dos mortos.
A Santa Triunidade e a Vontade Total
Saúdam e aclamam o Homem Liberto.
Felizes são aqueles que ouvem e compreendem.
Felizes são aqueles que, ao se encontrarem sós com a
Noite,
Sentem-se calmos, profundos e vastos como a própria
Noite;
Cujas faces não são feridas, no escuro, pelos males
Que eles não cometeram no escuro;
Cujos olhos não estão cheios das lágrimas
Que fizeram seus semelhantes verter;
Cujas mãos não coçam de más intenções e de ganância;
Cujos ouvidos não assobiam dos silvos de sua luxúria;
Cujo pensar não é mordido pelos seus pensamentos;
Cujos corações não são moradas de todas as preocupações
Que surgem, ininterruptamente, de todos os cantos do
Tempo;
Cujos receios não cavam túneis em seus cérebros;
Que podem dizer corajosamente à Noite: “Revela-nos o
Dia”,
E dizer ao Dia: “Revela-nos a Noite”.
Sim, três vezes felizes são os que, estando a sós com a
Noite,
Sentem-se tão à vontade, tão em paz, tão infinitos como a
Noite.
Para eles, somente, é que a Noite canta a canção do
Homem Liberto.
Se vós quiserdes enfrentar a calúnia do Dia, com a cabeça
erguida e os olhos abertos, fazei por conquistar logo a
amizade da Noite.
Sede amigos da Noite. Lavai, completamente, vossos
corações, no próprio sangue da vida e colocai-o no
coração da Noite. Confiai vossos ardentes desejos ao seio
da Noite e imolai aos seus pés vossas ambições, para
serdes livres pela Sagrada Compreensão. Sereis então
invulneráveis a todos os dardos do Dia e a Noite
testemunhará por vós, perante os homens de que realmente
sois Homens Libertos.
Embora os dias febricitantes vos atirem para um lado e
para outro;
E as noites sem estrelas vos envolvam em sua melancolia;
E sejais atirados às encruzilhadas do mundo,
Em que não há rastos ou sinais que vos mostrem o
caminho,
Não temais nenhum homem ou circunstância,
Nem tenhais a menor sombra de dúvida
De que os dias e as noites, bem como os homens e as
coisas,
Que os comandeis, pois tereis conquistado a confiança da
Noite.
E o que conquista a confiança da Noite
Pode, facilmente, comandar o dia vindouro.
Dai ouvidos ao coração da Noite, pois nele bate o coração
do Homem Liberto.
Se eu tivesse lágrimas, as ofereceria esta noite a todas as
estrelas que cintilam e a todo grãozinho de pó; a todo
regato marulhante e a toda cigarra cantora; a toda violeta
que irradia no ar sua alma olorosa; a todo vento que sopra;
a toda montanha e a todo vale; a toda árvore e a toda folha
de capim; a toda paz e a toda beleza desta Noite.
Derramaria minhas lágrimas diante delas, como apologia
pela ingratidão e pela ignorância selvagem dos homens.
Os homens, escravos do nefasto “Vintém”, estão ocupados
no serviço do seu senhor, excessivamente ocupados para
que possam dar atenção a qualquer voz ou vontade que
não sejam a sua própria voz e a sua própria vontade.
E pavoroso é o negócio do senhor dos homens. É
transformar o mundo em um matadouro em que eles são
os magarefes e o gado a ser abatido. E assim,
embebedados pelo sangue, os homens matam os homens
na ilusão de que o que mata herda a parte dos que são
mortos, em todas as riquezas da terra e da munificência
dos céus.
Infelizes ingênuos! Desde quando um lobo se torna
cordeiro por ter matado outro lobo? Desde quando a
serpente se torna pomba por ter esmagado e devorado
outras serpentes? Desde quando um homem, por matar
outro homem, só herda as suas alegrias, sem herdar
também as suas tristezas? Desde quando um ouvido
furando outros ouvidos, se torna mais afinado para com as
harmonias da Vida, ou um olho se torna mais sensível às
emanações da Beleza, em furando outros olhos?
Haverá um homem ou grupo de homens que possa exaurir
as bênçãos de uma só hora, seja de pão e vinho ou de luz e
de paz? A Terra não dá à luz mais entes do que pode
alimentar. Os céus não exigem nem furtam a subsistência
de seus filhos.
Mente aquele que diz aos homens: “Quem quer encher a
sua arca de prata, tira a vida alheia e herda daquele a quem
mata”.
Como pode ele prosperar com as lágrimas, o sangue e a
agonia dos homens que não puderam prosperar no seu
amor e no leite e no mel da Terra, e na profunda afeição
dos céus?
Mentem aqueles que dizem aos homens: “Cada nação para
si própria”.
Como poderia a centopéia caminhar para frente um só
centímetro se cada uma de suas pernas se movesse em
uma direção diferente, ou impedir o progresso das outras
ou planejar a destruição das outras? Não é por acaso a
humanidade um monstro centípede cujas pernas são as
várias nações?
Mente quem diz aos homens: “Dirigir é uma honra, ser
dirigido é uma vergonha”.
Não é o cocheiro guiado pelo burro que o transporta? Não
está o carcereiro preso ao dever de vigiar o encarcerado?
Na verdade, o burro dirige o seu cocheiro e o criminoso
prende o seu carcereiro.
Menta quem diz aos homens: “Ganha a corrida o mais
esperto, o direito pertence ao mais forte”.
A vida não é uma corrida disputada com os músculos e a
força. O aleijado e o mutilado muitas vezes alcançam a
vitória muito mais rapidamente do que o sadio. E, às
vezes, até um mosquito vence o gladiador.
Mente aquele que diz aos homens que o mal não pode ser
corrigido senão pelo mal. Um mal superposto a outro,
jamais poderá tornar-se um bem. Deixai em sossego o mal
e em pouco tempo ele se destruirá a si mesmo.
Mas os homens são crédulos para com a filosofia de seu
senhor, o Vintém e os seus vorazes abutres; acreditam
piamente e religiosamente cumprem as suas mais
disparatadas fantasias, ao passo que não ouvem a Noite
que canta e prega a libertação, e nem ao próprio Deus
ouvem ou n’Ele confiam. E vós, companheiros, sereis por
eles marcados, como doidos ou impostores.
Não fiqueis ofendidos com a ingratidão e a dolorosa
zombaria dos homens; trabalhai com amor e interminável
paciência, para libertá-los de si mesmos e do dilúvio de
fogo e sangue, que em breve virá sobre eles.
Já é tempo dos homens pararem de matar os homens.
O sol, a lua e as estrelas estão desde a eternidade
esperando ser vistos e ouvidos e compreendidos; o
alfabeto da Terra aguarda ser decifrado; as estradas do
Espaço esperam ser viajadas; o fio enredado do Tempo
aguarda ser desenredado; a fragrância do Universo, ser
inalada; as catacumbas da Dor, serem demolidas; a
caverna da Morte, ser devastada; o pão da Compreensão
ser provado; e o Homem, Deus enfaixado, ser libertado de
suas faixas.
Já é tempo dos homens pararem com a pilhagem dos
homens e unirem fileiras para levarem à frente a tarefa
comum. Imensa é a tarefa, porém doce será a vitória. Tudo
mais, em comparação, é banal e vazio.
Sim, já é tempo. Poucos, todavia, darão ouvidos. Os outros
terão que aguardar novo chamado — nova alvorada.
CAPÍTULO 34
Acerca do Ovum Materno.
MIRDAD: No silêncio desta noite, Mirdad gostaria que
vós meditásseis sobre o Ovum Materno.
O Espaço e tudo o que nele há, é um ovo cuja casca é o
Tempo. Este é o Ovum Materno.
Envolvendo este Ovum, como ar envolve a Terra, está
Deus Manifestado, o Macro-Deus, a vida incorpórea,
infinita e inefável.
Encerrado neste Ovum está Deus Latente, o Micro-Deus, a
Vida englobada, também infinita e inefável. Conquanto
imensurável no que se refere às medidas humanas, o
Ovum Materno tem limites. Embora ele próprio não seja
infinito, está cercado pelo infinito em todos os lados.
Os inúmeros ova (plural latino de ovum), representando
todas as coisas e seres, visíveis e invisíveis, estão de tal
modo arrumados dentro do Ovum Materno, que o maior
em expansão contém o imediatamente menor, com
espaços intermediários, até o ovum menor de todos, que é
o núcleo central, encerrado no espaço-tempo infinitesimal.
Um ovum dentro de um ovum, dentro de outro ovum,
desfiando os números humanos, todos fertilizados por
Deus: — eis aí o Universo, meus companheiros.
No entanto, percebo que minhas palavras são muito
escorregadias para as vossas mentes, mas a boa vontade as
tornará em degraus seguros e firmes, que vos hão de levar
à perfeita Compreensão. Firmai-vos em mais do que
palavras e em mais do que vossas mentes, se desejardes
chegar às alturas a que Mirdad deseja que chegueis.
As palavras são, quando muito, relâmpagos que revelam
horizontes; elas não são o caminho para esses horizontes,
muitos menos os próprios horizontes. Por isso, quando vos
falo do Ovum e dos ova, do Macro-Deus e do Micro-Deus,
não vos apegueis à letra, mas segui o relâmpago. Assim
verificareis que minhas palavras são poderosas asa para
vossa claudicante compreensão.
Meditai sobre a Natureza que vos cerca. Não verificais que
está construída sobre os princípios do ovum? Sim, é do
ovum que ireis encontrar a chave de toda criação.
É um ovum vossa cabeça, vosso coração e vossos olhos. E
ova são todos os frutos e sementes. É um ovum toda gota
de água, e ovum é o espermatozóide de qualquer criatura
viva; e as inúmeras esferas que traçam suas rotas sobre a
face dos céus — não são todas elas ova que contêm a
quintessência da Vida? — o Micro-Deus em vários
estágios de desenvolvimento? Não está toda a Vida, sendo
constantemente incubada, a sair de um ovum para tornar a
entrar em outro ovum?
Realmente miraculoso e contínuo é o progresso da criação.
A corrente da Vida da superfície do Ovum Materno parte
do centro e do centro vai, ininterruptamente, para a
periferia. À medida que se vai expondo no Tempo e no
Espaço, o Micro-Deus e o núcleo central passa de ovum a
ovum, da mais baixa à mais alta ordem de Vida, sendo a
mais baixa a de menor expansão e a mais alta a de maior
expansão no Tempo e no Espaço, variando o tempo
necessário para a passagem do ovum de uma para outra
ordem, de um piscar olhos, em alguns casos, até um éon
em outros. E assim prossegue o processo até que a casca
do Ovum Materno é rompida e o Micro-Deus emerge
como Macro-Deus.
A Vida, pois, é um desenvolvimento, um crescimento e
um progresso; não, porém, como os homens consideram e
falam sobre o crescimento e o progresso, pois crescimento
para eles é um acréscimo de volume e progresso, o
caminhar para frente. O crescimento, porém, é uma
expansão total no Tempo e no Espaço e o progresso é um
movimento que se estende, igualmente, em todas as
direções: para trás, bem como para frente, para baixo e
para os lados, bem como para cima. Portanto, o
crescimento fundamental, é o crescimento do Espaço; e o
progresso fundamental é o avançar do Tempo, fundindo-se
no Macro-Deus e atingindo a sua libertação das cadeias do
Tempo e do Espaço, que é a única liberdade que merece
tal nome. E é esse o destino traçado para o Homem.
Meditai bem sobre estas palavras, ó monges. A não ser
que o vosso próprio sangue as assimile com satisfação,
vossos esforços para vos libertardes e para libertar os
outros poderão acrescentar mais elos às vossas cadeias e
às do vosso próximo. Mirdad quer fazer-vos compreender
que podereis auxiliar todos os que anseiam a também
compreender. Mirdad quer que vos liberteis para que
possais guiar para a Liberdade a raça daqueles que
anseiam por se libertarem. Eis porque tentará elucidar
ainda melhor este princípio do ovum, especialmente
naquilo que se refere ao Homem.
Todas as ordens de seres, abaixo do Homem, estão
incluídas em um grupo de ova. Há, pois, para as plantas,
tantos ova quantas variedades de plantas existem, as mais
evoluídas encerrando as menos evoluídas. O mesmo
quanto aos insetos, peixes e mamíferos; sempre os mais
evoluídos encerrando todas as ordens da Vida, abaixo
delas, até o núCleo central.
Assim como a gema e a clara dentro de um ovo comum
serve para alimentar e desenvolver o embrião nele
encerrado, também todos os ova, encerrados em qualquer
ovum, servem para alimentar e desenvolver o Micro-Deus
ali encerrado.
Em cada ovum sucessivo, o Micro-Deus encontra um
alimento espaço-tempo ligeiramente diferente daquele que
lhe foi fornecido pelo ovum precedente. Daí a diferença na
expansão espaço-tempo. Ele é difuso e informe no Gás e
se torna mais concentrado no Líquido quando então se
aproxima de uma fôrma; no Mineral assume uma forma
definida e com uma fixidez permanente enquanto está
desprovido de quaisquer atributos da Vida conforme se
manifestam nas formas superiores. No Vegetal, toma
forma com a capacidade de crescer, multiplicar-se e sentir;
no Animal sente, move-se, propaga-se e possui memória e
rudimentos da capacidade de pensar. Mas no Homem,
além de tudo isso, adquire a personalidade e a capacidade
de contemplar, de expressar-se e de criar. Verdade é que a
criação do Homem, em comparação com a de Deus, é
semelhante a um castelo de cartas construído por uma
criança, comparando a um magnífico templo ou um
elegante castelo construído por um superarquiteto. Não
obstante, é uma criação.
Cada homem se torna um ovum individual, o mais
evoluído encerrando o menos evoluído e também todos os
animais, vegetais ova inferiores, até o núcleo central.
Enquanto o mais evoluído — o Liberto — encerra todos
os ova humanos e subumanos.
O tamanho do ovum que encerra qualquer homem é
medido pela amplitude dos horizontes de espaço-tempo
desse homem. Enquanto a consciência do Tempo de um
determinado homem não ultrapassa o curto período que
vai de sua infância até o momento presente, e seus
horizontes de Espaço não abrangem mais do que seus
olhos podem alcançar, os horizontes de outro, abrangem
passados imemoráveis e futuros, muito além em distância
e léguas de espaço, ainda não atingidos pelos seus olhos.
O alimento fornecido a todos os homens, para seu
desenvolvimento é o mesmo; não é, porém, a mesma, a
sua capacidade de alimentar-se e de digerir, pois não
saíram do mesmo ovum na mesma ocasião e no mesmo
lugar. Daí a diferença nas suas expansões de espaçotempo;
e aí está o motivo de não se encontrarem dois
exatamente iguais.
Da mesma mesa, tão rica e prodigamente posta, diante dos
homens, um se banqueteia com a pureza e a beleza do
ouro e se satisfaz, enquanto o outro se banqueteia com o
próprio ouro e está sempre com fome. O caçador, em
vendo uma corça, é impelido a matá-la e comê-la. O poeta,
ao ver a mesma corça é transportado, como se tivesse asas,
aos espaços-tempos, com os quais o caçador jamais sonha.
Micayon, vivendo na mesma Arca em que vive
Shamadam, sonha com a liberdade final e o alto da
montanha da libertação das cadeias do Tempo e do
Espaço, enquanto Shamadam está constantemente se
amarrando com laços cada vez mais compridos e mais
fortes de Espaço e de Tempo. Na realidade Micayon e
Shamadam, embora se acotovelem, estão muito longe um
do outro. Micayon contém Shamadam; porém Shamadam
não contém Micayon. Por isso Micayon pode compreender
Shamadam, mas Shamadam não pode compreender (*)
Micayon.
(*) – É curioso verificar que, etimologicamente, em
português, a palavra compreender significa prender
conjuntamente, sendo por isso sinônimo de abranger, o
que está em perfeito acordo com o texto.
A vida de um Liberto toca a vida de todos os homens por
todos os lados, pois contém as vidas de todos os homens.
No entanto, a vida de nenhum homem toca, por todos os
lados a vida de um Liberto. Ao homem mais simples, o
Liberto dá a impressão do mais simples dos homens. O
altamente evoluído, o reconhece como altamente evoluído.
Mas há certos aspectos do Liberto que somente outro
Liberto pode perceber e compreender. Eis porque ele é um
solitário, e se sente como quem está no mundo, porém,
não é do mundo.
O Micro-Deus não quer permanecer encerrado. Está
sempre trabalhando pela sua libertação, da prisão no
Tempo e no Espaço, usando uma inteligência muito
superior à humana. Nos entes inferiores, os homens a
chamam de instinto. Nos homens superiores, a chamam de
senso profético. E é tudo isso e muito mais do que isso. É
aquele poder sem nome a que alguns deram, muito
adequadamente, o nome de Espírito Santo e que Mirdad
denomina de Espírito da Sagrada Compreensão.
O primeiro Filho do Homem que furou a casca do Tempo
e atravessou a fronteira do Espaço foi chamado com muita
razão, o Filho de Deus. Sua compreensão da divindade é,
adequadamente, denominada Espírito Santo. Podeis estar
certos de que vós também sois filhos de Deus e que
também em vós o Espírito Santo procura entrar. Trabalhai
com Ele e jamais contra Ele.
Enquanto, porém, não houverdes furado a casca do Tempo
e atravessado a fronteira do Espaço que ninguém diga “EU
SOU DEUS”. Antes diga “DEUS É EU”. Conservai bem
isto em vossa mente para que o orgulho e vã imaginação
não corrompam os vossos corações e milite contra o
trabalho do Espírito Santo, dentro de vós, pois a maior
parte dos homens trabalha conta o Espírito Santo, adiando
a libertação final.
Para conquistar o Tempo, tereis que, com o Tempo,
combater o Tempo. Para vencer o Espaço tereis de deixar
que o Espaço devore o Espaço. Fazer-se de amável
anfitrião de qualquer deles é permanecer prisioneiro de
ambos e refém das infindáveis travessuras do Bem e do
Mal.
Aqueles que descobriram o seu destino e anseiam por
vivê-lo, não perdem tempo embalando o Tempo, nem
passos andando no Espaço. No intervalo de uma curta vida
poderão enrolar os eons e aniquilar imensas vastidões.
Não esperam que a Morte os leve a um ovum próximo aos
deles; confiam em que a Vida os auxiliará a perfurar a
casca de muitos ova de uma só vez.
Para isso precisais estar desapegados de tudo para que o
Tempo e o Espaço não tenham domínio sobre os vossos
corações. Quanto mais possuirdes, mais sereis possuídos.
Quanto menos possuídos, menos sereis possuídos.
Sim, sede destituídos de tudo, exceto de vossa Fé, vosso
Amor e vosso anseio pela libertação, por meio da Sagrada
Compreensão.
CAPÍTULO 35
Centelha no caminho que conduz a Deus
MIRDAD: No silencia desta noite, Mirdad lançará
algumas faíscas no vosso caminho, em direção a Deus.
Evitai as discussões. A Verdade é um axioma, não
necessita de prova. Tudo que necessita ser sustentado com
argumentos e provas, mais tarde ou mais cedo é derrubado
com provas e argumentos.
Provar algo é negar o seu oposto. Provar o oposto é negar
o que havia sido afirmado. Deus não tem opostos. Como
podereis prová-Lo ou negá-Lo?
Para ser instrumento da Verdade, a língua jamais poderá
ser um instrumento de flagelo, um dente que rasgue a
carne, um catavento, um acrobata ou um abutre.
Falai para aliviar o está em falta. Calai para vos aliviar.
As palavras são barcos que navegam pelos mares do
Espaço e tocam em muitos portos. Tende cuidado com a
espécie de carga, com que os carregais: pois tendo seguido
seu curso, terminarão por descarregar sua carga à vossa
porta.
Assim como a vassoura é para a casa, a “busca-de-simesmo”
o é para o coração. Varrei bem os vossos
corações.
Um coração bem varrido é uma fortaleza inconquistável.
Conforme vós vos alimentardes dos homens e das coisas,
também eles e elas, de vós se alimentarão. Sede alimento
sadio para o próximo, se não quiserdes ser envenenados.
Quando estiverdes em dúvida sobre o passo que deveis dar
a seguir, permanecei parados. Vós sois desagradáveis às
coisas que vos desagradam. Apreciai-as e deixai-as em
paz, removendo assim um obstáculo do vosso caminho.
A mais insuportável praga é considerar algo como uma
praga.
Escolhei entre estas duas coisas: possuir tudo ou nada
possuir. Nenhum meio termo é possível.
Toda pedra de tropeço é um aviso. Lede cuidadosamente o
aviso e a pedra de tropeço se tornará um farol.
O ereto é irmão do corcunda. O primeiro é um atalho, o
segundo o caminho que dá a volta. Tende paciência com o
corcunda.
A paciência é saúde quando se apóia na Fé. Quando não
está acompanhada de Fé, é paralisia.
Ser, sentir, pensar, imaginar, saber — Cuidado com a
seqüência certa dos estágios, no circuito da vida humana.
Cuidado ao elogiar e ao receber elogios, mesmo quando
sinceros e merecidos. Quanto à lisonja, sede surdos e
mudos às suas pérfidas promessas.
Tomais emprestado tudo quanto dais, quando sois
conscientes de estar dando.
Na realidade nada que seja vosso podereis dar. Só podeis
dar aos homens aquilo de que sois depositários para eles.
Aquilo que na verdade é vosso — e exclusivamente vosso
— não o podereis dar, nem mesmo se assim o desejásseis.
Conservai-vos equilibrados e sereis o padrão e a balança
para os homens medirem-se e pesarem-se, a si mesmos.
Não há pobreza nem riqueza. Há a habilidade de usar as
coisas.
Realmente pobre é aquele que usa mal o que tem.
Realmente rico é o que usa bem o que possui.
Até mesmo uma côdea de pão pode ser uma riqueza
incalculável. E mesmo, um celeiro transbordante de ouro,
pode ser pobreza irremediável.
Quando muitas estradas convergem, não precisais hesitar
quanto àquela a tomar. Para o coração que busca a Deus,
todas as estradas a Deus conduzem.
Aproximai-vos reverentemente de todas as formas de
Vida. Na mais insignificante delas, está escondida a chave
da mais significativa.
Todas as formas de Vida são significativas — sim,
maravilhosas, transcendentes e inimitáveis. A Vida não se
ocupa de ninharias inúteis.
Para sair das oficinas da Natureza, a obra precisa ser
merecedora do amoroso cuidado da Natureza e da mais
meticulosa arte. Não será também merecedora do vosso
respeito?
Se os mosquitos e as formigas merecem respeito, que dizer
dos nossos semelhantes?
A ninguém desprezais. É melhor ser desprezado por todos
os homens, a desprezar um só deles.
Desprezar um homem é desprezar o Micro-Deus que nela
há. E desprezar o Micro-Deus, em qualquer homem, é
desprezá-Lo em vós mesmos. Como pode alguém atingir o
seu porto de refúgio, se escarnece do único piloto que o
pode conduzir a esse porto?
Olhai para cima para que possais ver o que está em baixo.
Olhai para baixo, a fim de que possais ver o que está em
cima.
Descei o quanto houverdes subido; caso contrário perderei
o equilíbrio.
Hoje sois alunos; amanhã sereis professores. Para serdes
bons professores, devereis ser bons alunos.
Não deveis tentar eliminar o Mal do mundo; até mesmo a
erva daninha serve de bom adubo.
Somente árvores altas e fortes não fazem a floresta. É
preciso sempre que haja alguns arbustos e trepadeiras.
A hipocrisia pode ser conservada e encoberta durante
algum tempo; não o pode ser para sempre; nem pode ser
destruída e exterminada.
As paixões escuras se geram e prosperam nas trevas.
Colocai-as à luz e sua geração diminuirá.
Se dentre mil hipócritas conseguirdes trazer um único à
simples honestidade, em verdade vos digo, que grande terá
sido o vosso sucesso.
Acendei um farol e não andeis a chamar os homens para
que o veja. Aqueles que necessitarem de luz, não
precisarão ser convidados a ela.
A sabedoria é uma carga para o semi-sábio, assim como a
tolice o é para o tolo. Ajuda o semi-sábio a carregar sua
carga e deixa de lado o tolo; o semi-sábio poderá ensiná-lo
melhor do que vós.
Muitas vezes achareis que o vosso caminho é intransitável,
sombrio e falto de companheiros. Sedes perseverantes e
continuai a trilhá-lo; ao chegar a cada curva encontrareis
um novo companheiro.
Nenhuma estrada no Espaço sem trilhas, ainda está sem ter
sido usada. Quando os rastros são escassos e distantes um
dos outros, o caminho é seguro e reto, embora rude e
solitário em alguns trechos.
Os guias podem mostrar o caminho àqueles a quem deve
ser mostrado, porém não os podem obrigar a trilhá-lo.
Lembrai-vos de que sois guias.
Para bem guiar, alguém precisa ser bem guiado. Confiai
no vosso Guia.
Muitos vos dirão: “Mostrai-nos o caminho”. Muito
poucos, pouquíssimos vos dirão: “Por favor, guiai-nos
pelo caminho”.
No caminho da realização, o pouco vale mais do que o
muito.
Engatinhai, onde não puderdes andar. Andai, onde não
puderdes correr. Correi, onde não puderdes voar. Voai,
onde não puderdes fazer o universo parar, dentro de vós.
Não uma vez, nem duas, nem mesmo cem vezes, deveis
levantar o homem que tropeça ao tentar seguir a vossa
orientação. Continuai a levantá-lo até que não tropece
mais, lembrando-vos de que vós também já fostes
crianças.
Ungi os vossos corações e vossas mentes com o perdão,
para que possais sonhar sonhos ungidos.
A Vida é uma febre de intensidade variável e de diversas
espécies, dependente da obsessão de cada homem, e os
homens estão sempre em delírio. Bem aventurados os que
deliram com a Sagrada Liberdade, que é fruto da Sagrada
Compreensão.
As febres do homem são transmutáveis. A febre da guerra
pode ser transmutada na febre da paz; a febre de acumular
ouro, em febre de acumular amor. Essa é a alquimia do
Espírito, que sois chamados a praticar e ensinar.
Pregai Vida ao que está morrendo; e ao que está vivendo,
pregai Morte. Mas àqueles que anseiam pela Realização,
pregai o libertar-se de ambas.
Grande é a diferença entre “prender” e “ser preso”.
Prendeis somente aquilo que amais. Aquilo que odiais vos
prende. Evitai o serdes presos.
Mais Terras estão girando em seus trajetos pelos vácuos
do Tempo e do Espaço. A vossa é a mais jovem da família
e que robusta criança ela é!
Um movimento estacionário — que paradoxo! No entanto
é esse o movimento dos mundos em Deus.
Olhai para os dedos de vossas mãos, para verificardes
como as coisas diferentes podem ser iguais.
O Acaso é o brinquedo dos sábios... Os tolos são os
brinquedos do Acaso.
Nunca vos queixeis de coisa alguma. Queixar-se de
alguma coisa é transformá-la em um flagelo do queixoso.
Suportá-la bem é flagelá-la bem. Mas compreendê-la, é
torná-la uma serva fiel.
Muitas vezes sucede que o caçador, visando uma corça,
atira e erra, matando um coelho cuja presença nem havia
notado. O caçador hábil, nesse caso, dirá: “Era realmente o
coelho que eu havia visado e não a corça. E obtive a
minha caça”.
Visai bem, e qualquer resultado será um bom resultado.
Jamais errareis uma visada, se aquilo que mirais vos visa.
Uma visada que se erra é sempre uma visada atingida.
Tornai os vossos corações à prova de decepções.
As decepções são aves de rapina criadas por corações
fracos, que descem aos cadáveres de suas esperanças
abortadas.
Uma esperança que se realiza, torna-se mãe de muitas
esperanças que nascem mortas. Cuidado! Não deis os
vossos corações em casamento à Esperança, se não quereis
que eles se transformem em cemitérios.
Uma em cada cem ovas, lançadas ao mar, por um peixe,
pode dar origem a um peixinho. No entanto, as outras
noventa e nove não são perdidas. A Natureza se mostra,
assim, pródiga e discriminadamente indiscriminada. Sede
igualmente pródigos e, discriminadamente
indiscriminados em semear os vossos corações nos
corações e mentes dos homens.
Não busqueis recompensa alguma pelo trabalho feito. O
trabalho é recompensa suficiente para o trabalhador que
ama o seu trabalho.
Lembrai-vos da Palavra Criadora e do Equilíbrio Perfeito.
Quando houverdes atingido esse Equilíbrio, por meio da
Sagrada Compreensão, só então vos tereis tornado libertos
e então vossas mãos colaborarão com as mãos de Deus.
Possam, a paz e o silencio desta noite, vibrar em vós, até
que os afogueis na paz e no silêncio da Sagrada
Compreensão.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
CAPÍTULO 36
O dia da Arca e os seus rituais.
A mensagem do príncipe de Bethar a respeito da lâmpada
viva.
Naronda: Desde que o Mestre voltara de Bethar,
Shamadam andava amuado e retraído. Ao chegar, porém,
o Dia da Arca, tornou-se animado e vivo, tomando a
direção pessoal dos intrincados preparativos, até nos
mínimos pormenores.
Tal como o Dia da Videira, o Dia da Arca havia sido
prolongado de um único dia, para uma semana inteira, de
alegres festividades e animado comércio de toda sorte de
mercadorias e bens móveis.
Dos muitos rituais peculiares a este Dia, os mais
importantes são: a matança de um boi para ser oferecido
em sacrifício, o acendimento do fogo do sacrifício e o
acendimento, nesse fogo, da nova lâmpada que deve
substituir a antiga no altar. Tudo isso é executado pelo
Superior, com grande cerimonial a que o público assiste,
terminando cada assistente por acender a sua vela na nova
lâmpada, velas essas que são depois apagadas e
zelosamente conservadas como talismãs, contra os maus
espíritos. No fim do cerimonial, é costume o Superior
fazer um sermão.
Os peregrinos do Dia da Arca, tal como os do Dia da
Videira, raramente deixam de trazer alguns presentes e
donativos de qualquer espécie. A maior parte traz bois,
bodes ou carneiros, aparentemente para serem
sacrificados, juntamente com o boi oferecido pela Arca,
mas que na realidade se destinam a aumentar o rebanho da
Arca e não a serem abatidos. A nova lâmpada é, em geral,
presenteada por algum príncipe ou magnata das
Montanhas Alvas. E, como é considerado uma grande
honra e um privilégio fazer esse presente, e como os
concorrentes são muitos, estabeleceu-se o costume de
fazer-se a escolha, todos os anos, por sorteio, executado no
encerramento das festividades do ano anterior. Os
príncipes e magnatas rivalizam-se em zelo e devoção, cada
qual desejando que a sua lâmpada supere todas as
anteriores em custo, beleza de desenho e riqueza de
artesanato.
A sorte, para este ano, havia designado o príncipe de
Bethar. Todos aguardavam ansiosos para verem a nova
lâmpada, pois o príncipe era famoso pela sua riqueza
generosa, bem como pelo seu fervor para com a Arca.
Na véspera desse dia, Shamadam chamou-nos, bem como
ao Mestre, à sua cela e nos disse o que segue, dirigindo-se
ao Mestre do que a nós:
Shamadam: Amanhã será dia santo, e devemos comportarnos
de modo a conservá-lo santo.
Sejam quais forem as dissensões do passado, vamos
enterrá-las aqui e agora. A Arca não deve sofrer um
retardamento no seu progresso ou uma diminuição do seu
ardor. E Deus não permita que tenha de parar.
Eu sou o Superior desta Arca. O meu pesado dever é
comandá-la. Fui investido do direito de lhe traçar a rota.
Este dever e este direito me foram conferidos por
sucessão, como certamente o serão a um de vós quando eu
morrer. Assim como esperei a minha vez, esperai pela
vossa.
Se fiz mal a Mirdad, ele que perdoe a minha injustiça.
MIRDAD: Não fizeste mal a Mirdad, mas o fizeste, e
gravemente, a Shamadam.
Shamadam: E não é Shamadam livre para fazer mal a
Shamadam?
MIRDAD: Livre para fazer mal? Como são incoerentes
essas palavras! Fazer mal, embora seja a si mesmo, é ficar
escravo do mal que se pratica. Ao passo que fazer mal a
outrem, é ficar escravo do escravo. Como pesa o mal!
Shamadam: E se estou disposto a suportar o peso do meu
erro, a ti que te importa?
MIRDAD: Diria um dente cariado à boca: “Que te importe
a minha dor, se estou disposto a suportá-la?”
Shamadam: Deixa-me! Deixa-me! Retira de mim a tua
mão pesada e não me flageles com a tua língua esperta.
Deixa-me viver o resto dos meus dias como os tenho
vivido e trabalhado até hoje. Vai e constrói a tua arca em
qualquer outro lugar, mas deixa esta Arca. O mundo é
bastante grande para ti e para mim, para a tua arca e para a
minha. Amanhã é o meu dia. Fica de fora e deixa-me
executar o meu trabalho, pois não vou tolerar a
interferência da parte de nenhum de vós.
Tende cuidado! A vingança de Shamadam é terrível como
a de Deus. Tende cuidado! Tende cuidado!
Naronda: Ao sairmos da cela do Superior, o Mestre
sacudiu a cabeça e disse:
MIRDAD: O coração de Shamadam ainda é o coração de
Shamadam.
Naronda: Na manhã seguinte, para gáudio de Shamadam,
as cerimônias se executaram pontualmente e sem
quaisquer incidentes desagradáveis, até o momento em
que a nova lâmpada deveria ser apresentada e acesa.
Nesse momento, um homem muito alto e imponente,
vestido de branco, começou a abrir caminho com
dificuldade por entre a multidão, dirigindo-se ao altar.
Num instante, um sussurro passou de boca em boca: o
homem era um emissário especial do príncipe de Bethar,
que trazia a nova lâmpada e todos estavam ansiosos para
ver o precioso tesouro.
Shamadam curvou-se diante do mensageiro, acreditando
que ele trouxesse o precioso presente para o novo ano.
Mas o homem, tendo dito algo em voz baixa a Shamadam,
tirou do bolso um pergaminho e, depois de explicar que
era a mensagem do príncipe de Bethar, que o havia
encarregado de apresentar pessoalmente, começou a ler:
Emissário do Príncipe de Bethar: Do ex-príncipe de Bethar
a todos os seus concidadãos das Montanhas Alvas,
reunidos neste dia na Arca — paz e amor fraternal.
De minha fervorosa devoção pela Arca, todos vós sois
testemunhas vivas. Como a honra de presentear a lâmpada
para este ano me tocou, não poupei esforços nem riqueza
para que o meu presente fosse digno da Arca. E meus
esforços foram recompensados, pois a lâmpada que a
minha riqueza e a habilidade de meus artesãos finalmente
criaram era uma verdadeira maravilha para se ver.
Deus, porém, foi clemente e bondoso e não quis que eu
expusesse a minha pobreza miserável, e por isso me levou
a conhecer uma lâmpada cuja luz é ofuscante e
inextinguível, cuja beleza é insuperável e inoxidável. Ao
possuir esta lâmpada fiquei terrivelmente envergonhado
por ter algum dia pensado que a minha outra lâmpada
tinha qualquer valor. Lancei-a, pois, ao monte de lixo.
E é esta lâmpada viva, não trabalhada por mãos de
homens, que eu com todo empenho, confio a todos vós.
Daí uma festa a vossos olhos contemplando-a e nela
acendei as vossas velas. Vede, está ao vosso alcance: o
nome é MIRDAD.
“Assim sejais dignos da sua Luz”.
Naronda: Mal havia ele pronunciado as últimas palavras e
Shamadam, que estivera de pé a seu lado, subitamente
desapareceu, como se fosse um fantasma. O nome do
Mestre correu pela imensa multidão como uma rajada de
poderoso vento, através de uma floresta virgem. Todos
queriam ver a lâmpada viva, da qual o príncipe de Bethar
falara com tanto entusiasmo em sua mensagem.
Dentro em pouco, se viu o Mestre subir os degraus do altar
e voltar-se para a multidão. E, subitamente, aquela massa
humana se comportou como um só homem, atenta, ansiosa
e alerta. Então o Mestre falou e disse:
CAPÍTULO 37
O Mestre avisa a multidão sobre o dilúvio de fogo e
sangue, ensina o caminho de salvação e lança a sua Arca.
MIRDAD: Que buscai em Mirdad? Uma lâmpada de ouro,
cravejada de pedras preciosas, para decorar o altar? Mas
Mirdad não é ourives nem joalheiro, embora seja um farol
e um porto.
Ou buscais um talismã que vos proteja do mau olhado?
Talismãs, Mirdad os têm em quantidade, porém de outra
espécie.
Ou procurais uma luz com a qual possais caminhar em
segurança, cada um no caminho que lhe foi destinado? Na
realidade isso é muito estranho! Tendes o sol, a lua, as
estrelas e ainda temeis tropeçar e cair?! Ou os vossos
olhos são inadequados à luz, ou a luz é escassa para os
vossos olhos. E qual de vós poderia passar sem os olhos?
Quem acusaria o sol de ser avarento?
De que valem os olhos que impedem que os pés tropecem
no seu caminho, mas que deixam o coração tropeçar e
sangrar ao andar inutilmente e às apalpadelas, à procura de
um caminho?
De que vale a luz que enche os olhos, mas deixa o espírito
vazio e sem iluminação?
Que buscais em Mirdad? Se buscais ver corações e
espíritos banhados na luz que desejais e pela qual clamais,
então realmente o vosso clamor não é em vão, pois eu só
cuido do espírito e do coração do Homem.
Que trouxestes como ofertas neste Dia, que é um dia de
gloriosa Realização? Trouxestes bodes, carneiros e bois?
Que ínfimo preço quereis pagar pela vossa Libertação! No
entanto, é muito mais reduzido o preço da Libertação que
deveis comprar.
Não seria glória alguma para um homem ser libertado à
troca de um bode. E é realmente uma grande desgraça para
qualquer homem oferecer a vida de um pobre bode, como
remissão pela sua.
Que tendes vós feito para participar do espírito deste Dia,
que é um dia de Fé revelada e Amor supremamente
justificado?
Para dizer o que é certo, tendes praticado uma
multiplicidade de ritos e murmurado várias orações. Mas a
dúvida vos tem acompanhado em cada movimento e o
ódio tem dito: “Amém”, a cada oração.
Não estais aqui para celebrar a conquista do Dilúvio?
Como podeis celebrar uma vitória que vos deixou
vencidos?! Ao submeter as profundezas do seu próprio
coração, Noé não submeteu as profundezas dos vossos,
mas simplesmente vos mostrou o caminho. E na verdade
as profundezas de vossos corações estão cheias de raiva e
ameaçam naufragar-vos. Enquanto não superardes o vosso
dilúvio, não merecereis este Dia.
Cada um de vós é um dilúvio, uma arca e um comandante.
E enquanto não chegar o dia em que possais desembarcar
em terra virgem e recém-lavrada, não tenhais pressa de
celebrar a vitória.
Deveis saber como foi que o Homem se tornou um dilúvio
para si próprio. Quando a Sagrada Vontade Total partiu
Adão em dois, para que ele se conhecesse e
compreendesse a sua unicidade com o Uno, então ele se
tornou um Adão masculino e um Adão feminino. Foi
então inundado de desejos que são os filhos da Dualidade,
desejos tão numerosos, tão infinitos em aspectos, tão
imensos em magnitude, tão torpes e tão prolíficos, que até
hoje o homem é um náufrago sob as suas ondas. Mas uma
onda o tem levado a vertiginosas alturas, e já outra o
arrasta para o fundo. Isso porque os seus desejos são aos
pares, como ele também é um par. E embora dois opostos
realmente se completem um ao outro, para o ignorante eles
parecem agarrar-se, esmurrar-se e jamais querer dar-se um
só momento de trégua.
Este é o dilúvio que o Homem é chamado a enfrentar, hora
a hora, dia a dia, durante sua muito longa e árdua vida
dual.
Este é o dilúvio, cujas fontes se abrem no coração e vos
arrastam em sua correnteza.
Este é o dilúvio, cujo arco-íris não brilhará em vosso céu,
enquanto o vosso céu não se houver casado com vossa
terra e ambos sejam um.
Desde que Adão semeou-se em Eva, os homens têm
colhido furacões e dilúvios. Quando predominam as
paixões de certas espécies, a vida do homem sai fora do
equilíbrio e os homens são engolidos por um ou outro
dilúvio para que o equilíbrio se restabeleça. E o equilíbrio
não se restabelecerá definitivamente enquanto o homem
não aprender a amassar os seus desejos na masseira do
Amor, para com eles assas o pão da Sagrada
Compreensão.
O dilúvio que cobriu a Terra nos dias de Noé não foi o
primeiro nem o último que a humanidade conheceu.
Somente foi o que deixou marca mais alta na série dos
dilúvios devastadores. O dilúvio de fogo e sangue, que em
breve inundará a Terra, ultrapassará essa marca. Estais
preparados para flutuar ou sereis submergidos?
Ai! Estais muito ocupados, acrescentando pesos sobre
pesos; muito ocupados, envenenando vossa sangue com
prazeres transbordantes de dor; muito ocupados, abrindo
estradas que não vos levam a parte alguma; demasiado
ocupados, apanhando sementes no quintal dos armazéns
da Vida, sem ao menos espiar pelo buraco da fechadura.
Como evitareis de ser submergidos, meus extraviados?
Vós, nascidos para voar nas alturas, para vagar pelo
espaço infinito, para vencer o universo com vossas asas,
vos engaiolastes na gaiola da cômodas convenções e
crenças que vos cortam as asas, prejudicando a vossa vista
e petrificando vossos músculos. Como escapareis do
dilúvio vindouro, ó meus extraviados?
Vós, imagem e semelhança de Deus, já quase apagastes a
semelhança e a imagem; vosso porte divino diminui,
tornando-vos anões, a ponto de já não reconhecerdes de
quem descendeis. Vossa fisionomia divina, a tendes
enlameado e disfarçado com máscaras apalhaçadas. Como
podereis enfrentar o dilúvio que provocastes, meus
extaviados?
A não ser que deis ouvidos a Mirdad, a Terra jamais será
para vós mais do que sepultura, e o Céu, nada mais do que
mortalha. No entanto foram preparados, um para servir de
berço, e outro, de trono.
Mais uma vez vos digo, Vós sois o dilúvio, a arca e o
comandante. Vossas paixões são o dilúvio. Vosso corpo é
a arca. Vossa fé o comandante. Vossa vontade tudo
penetra. E acima de tudo isso, está a vossa compreensão.
Assegurai-vos de que a arca é estanque e pode navegar;
não gasteis, porém, toda vossa vida nesse mister, pois não
sabeis qual o dia em que ides navegar, e no fim, tanto vós
como vossa arca apodreceríeis e naufragaríeis no mesmo
local. Assegurai-vos de que o capitão é competente e
calmo. Mas acima de tudo, aprendei a procurar as origens
dos dilúvios e treinai vossa vontade para secá-los, um a
um. Então, certamente o dilúvio se enfraquecerá e,
finalmente, se acabará.
Queimai a paixão, ou ela vos queimará.
Não olheis para dentro da boca da paixão para verificardes
se tem dentes agudos ou mandíbulas cobertas de mel. A
abelha que recolhe o néctar das flores, recolhe também o
veneno.
Não analiseis o rosto da paixão para verificar se é
simpático ou antipático. Para Eva, o rosto da serpente era
mais simpático do que o de Deus.
Não coloqueis a paixão na balança para verificardes o seu
peso. Quem compararia o pelo de um diadema com o de
uma montanha? No entanto, o diadema realmente pesa
muito mais do que a montanha.
E há paixões que cantam canções celestiais durante o dia,
mas silvam, mordem e dão ferroadas sob a mortalha da
noite; há paixões gordas e pesadas de alegria que
rapidamente se transformam em esqueletos de tristeza;
paixões de olhar dócil e suave que subitamente se tornam
mais ferozes do que lobos, mais traiçoeiras do que hienas;
paixões mais perfumadas do que rosas, enquanto nelas não
se toca, e que são mais repugnantes do que abutres e
gambás, tão logo se as toca ou se as puxa.
Não peneireis as vossas paixões, separando-as em boas e
más, pois é tempo perdido. O bem não pode subsistir sem
o mal; o mal não pode ter raízes, senão no bem.
A árvore do Bem e do Mal é uma só e um só é o seu fruto.
Não podeis conhecer o sabor do Bem sem conhecer, ao
mesmo tempo, o sabor do Mal.
O úbere do qual sugais o leite da Vida, é o mesmo que
produz o leite da Morte. A mão que vos embala no berço,
é a mesma que cava a vossa sepultura.
Esta é, meus extraviados, a natureza da Dualidade. Não
sejais tão presunçosos e obstinados, a ponto de tentardes
mudá-la. Não sejais tão tolos, a ponto de tentar rachá-la
em duas metades, para ficardes com a que vos agrada a
atirardes fora a outra.
Quereis dominar a Dualidade? Tratai-a como não sendo
nem boa, nem má.
O leite da vida e da morte não se tornou já azedo em vossa
boca? Não é tempo já de enxaguardes a boca com algo que
não seja nem bom nem mal, por ultrapassar ambos? Não é
tempo já de almejardes o fruto que não é doce nem
amargo, pois não cresce na árvore do Bem e do Mal?
Quereis libertar-vos das muletas da Dualidade? Então
arrancai a sua árvore — a árvore do Bem e do Mal — de
vossos corações. Sim, arrancai-a com raízes e galhos, para
que a semente da Vida Divina, a semente da Sagrada
Compreensão. que está além de todo bem e de todo mal,
possa germinar e brotar em seu lugar.
Não traz alegria a mensagem de Mirdad, direis vós.
Rouba-nos a alegria de esperar pelo amanhã. Torna-nos
espectadores estúpidos e desinteressados da vida, quando
poderíamos ser competidores vociferantes, pois é doce
competir, seja qual for o resultado da contenda. E é doce
arriscar em uma corrida, mesmo que o prêmio seja uma
ninharia.
Assim dizeis vós em vossos corações, esquecendo-vos de
que vossos corações não mais vos pertencem, desde que
suas rédeas estão nas mãos de boas e más paixões.
Para serdes donos de vossos corações, amassai todas as
vossas paixões — boas e más — na masseira do Amor,
para poderdes assá-las no forno da Sagrada Compreensão
em que toda dualidade é unificada em Deus.
Cessai agora de criar dificuldades para um mundo em que
já existe excesso de dificuldades.
Como pretendeis tirar água limpa de um poço, no qual
incessantemente despejais toda sorte de lixo e de lama?
Como podem as águas de uma lagoa estar claras e serenas,
se a todo momento as agitais?
Não tireis a sorte para obter o sossego em um mundo
desassossegado, pois podeis obter o Desassossego.
Não tireis a sorte para obter um amor em um mundo
odiento, pois podeis obter Ódio.
Não tireis a sorte para obter a vida em um mundo
agonizante, pois podeis obter a Morte. O mundo não vos
pode pagar em outra moeda que não seja a sua — moeda
que sempre tem duas faces.
Tirai, porém, a sorte com o vosso infinito EU-Divino, que
é tão rico em pacífica Compreensão.
Não exijais do mundo o que não exigirdes de vós próprios.
Nem exijais de homem algum aquilo que não permitirdes
que ele exija de vós.
E que é aquilo que, se vos fosse concedido pelo mundo,
vos auxiliaria a superar o vosso dilúvio e desembarcar em
um mundo isento da dor e da morte, ligado ao céu por
Amor eterno e pela paz da Compreensão? Será poder,
bens, fama, autoridade, prestígio e respeito? Será a
ambição realizada e a esperança concretizada? Todas estas
coisas são fontes que alimentam o vosso dilúvio. Fora com
isso tudo, fora, fora meus extraviados!
Permanecei calados para serdes explícitos.
Sede explícitos para que possais compreender
explicitamente o mundo.
Quando bem compreenderdes o mundo, vereis como ele é
pobre e incapaz de vos proporcionar o que procurais:
liberdade, paz e vida.
Tudo o que o mundo vos pode dar é um corpo — uma arca
na qual navegareis pelo mar da vida dual. E isso não
deveis a homem algum neste mundo. É dever do universo
vô-lo fornecer e sustentá-la; mantê-la limpa e seca para
enfrentar o dilúvio; tão limpa e seca como a arca de Noé,
para prender nela as feras e as manter sob vosso controle,
tal como Noé prendeu as feras e as manteve sob perfeito
controle — é o vosso dever e somente vosso.
Ter uma fé desperta e de olhos vivos para metê-la ao leme,
uma fé inabalável na Vontade Total, que é vosso guia para
os bem-aventurados portões do Éden — esse é o vosso
trabalho, e somente vosso.
Ter uma vontade intemerata para assumir o comando, uma
vontade que se supere e participe da Árvore da Vida da
Sagrada Compreensão, é também vosso trabalho, e
somente vosso.
O Homem se dirige a Deus. Nenhum destino, aquém
desse, vale o seu esforço. Que dizer se a rota for longa,
com borrascas e tempestades? A Fé vinda de um coração
puro e olhos vivos, não vencerá as borrascas e
tempestades?
Apressai-vos. O tempo desperdiçado em preguiça está
repleto de dores. E os homens, mesmo os mais ocupados,
são na verdade, preguiçosos.
Todos vós sois arquitetos navais. E sois todos marujos.
Essa é a tarefa que vos foi assinalada desde a eternidade
para que possais navegar o oceano sem limites, que sois
vós próprios e, afinal, encontrareis a harmonia
inexprimível do Ser, cujo nome é Deus.
Todas as coisas precisam ter um centro, do qual irradiem e
à volta do qual girem.
Se a vida — a vida do Homem — é um círculo e o
encontrar a Deus for, portanto, o centro, então todo o
vosso trabalho deverá ser concêntrico em relação a esse
centro, ou será um devaneio, embora lavado em suor de
sangue.
E como a tarefa de Mirdad é levar o Homem a seu destino
— vede! — preparou para vós uma arca magnífica, uma
arca bem construída e bem comandada. Não uma arca de
madeira, vedada com betume; nem para transportar
corvos, lagartos e hienas. Mas uma arca de Sagrada
Compreensão que, realmente, será um farol para todos os
que anseiam pela Libertação. Seu lastro não será de
frascos de vinho e prensas de lagar, mas de corações
repletos de amor por tudo e por todos. Nem a sua carga
será de terras e bens móveis, prata, ouro e jóias, mas de
almas divorciadas de suas sombras e vestidas da luz e da
liberdade da Compreensão.
Que venham para a bordo aqueles que querem partir as
amarras que os prendem à Terra, aqueles que desejam ser
unificados e aqueles que anseiam por Libertar-se.
A Arca está pronta
O vento é favorável.
O mar está sereno.
Assim ensinei eu a Noé.
Assim eu agora vos ensino.
Naronda: Quando o Mestre parou, um sussurro correu pela
assembléia, que até então estivera imóvel como se
houvesse suspendido até a respiração para ouvir as
palavras dEle.
Antes de descer os degraus do altar, o Mestre chamou os
Sete, pediu a harpa e, com auxílio deles, começou a cantar
o hino da Nova Arca. A multidão logo aprendeu a melodia
e como uma onda poderosa enviava aos céus o doce
estribilho:
Deus é o comandante, navega minha Arca!
Aqui termina a parte do Livro que me é permitido publicar
para o mundo.
Quanto ao restante, a sua hora ainda não é chegada.
Tão logo chegue esse momento, todos serão avisados.

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