Ensaio sobre a cegueira - José Saramago - Escolha seu lado egoísmo X bondade
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Resenha do livro: Ensaio sobre a cegueira – José Saramago
Uma das primeiras coisas que me disseram sobre “Ensaio sobre a cegueira” foi que é uma história terrível.
Depois de ler, não posso dizer que discordo.
No entanto, antes que você, leitor, decida-se por evitar essa leitura, permita-me explicar porque esse livro fantástico consegue ser tão terrível; e porque esse terror é algo que precisava ser mostrado.
José Saramago escreveu uma história fascinante sobre um evento fictício: Num dia qualquer, começando com um motorista parado num sinal vermelho, começa a se espalhar uma epidemia de cegueira. Ao contato íntimo ou indireto, o mal não parece fazer distinção, se alastrando impiedosamente e causando acidentes, desespero e comportamentos que beiram o enlouquecedor.
A escrita é corrida, em blocos, sem espaços para fôlegos. O português é de Portugal, então a atenção tem que ser incisiva; a história demanda atenção. No entanto, não senti nisso um empecilho, porque “Ensaio Sobre a Cegueira” não precisa de espaços, porque se você pára e respira fundo, perde o fôlego na tensão e na tristeza.
Nós vivemos num mundo que se faz de civilizado. Somos o ápice da evolução humana. Representamos tudo o que sociedades anteriores não conseguiram alcançar em termos de ciência, tecnologia e medicina, entre tantos outros.
Saiu, nem valia a pena fechar o carro, daí a nada estaria de volta, e afastou-se. Ainda não tinha andado trinta passos quando cegou.Desejava que a noite não acabasse para não ter que anunciar, ele cujo ofício era curar as mazelas dos olhos alheios, Estou cego, mas ao mesmo tempo queria que chegasse rapidamente a luz do dia, com estas exactas palavras o pensou, A luz do dia, sabendo que não a iria ver.
E, no entanto, em um único livro, Saramago nos despiu dos ternos, dos modos afetados e das mentiras, mostrando o que cada ser humano pode se tornar, ou talvez o que todo ser humano realmente é, se ou quando exposto a determinadas situações e dificuldades. A cegueira acabou sendo uma metáfora perfeita para abrir os olhos do leitor. Incapaz de enxergarem, os personagens dessa história se viram dependentes, indefesos, e essas são duas coisas que ninguém gosta de ser.
Sem nomes, sem rostos, é assim que são esses cegos. Sem uma aparência para associar aos nomes próprios, acabam por se desfazer deles assim que a visão se vai. Para o leitor, Saramago os identifica por ‘A Mulher do Médico’, ‘O Médico’, ‘A Guria dos Óculos Escuros’, ‘O Primeiro Cego’, ‘O rapazinho estrábico’ e vários outros.
Depois, como se acabasse de descobrir algo que estivesse obrigado a saber desde muito antes, murmurou, triste, É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.Só posso levá-lo a ele, são as ordens que tenho, a senhora saia. A mulher, calmamente, respondeu, Tem de me levar também a mim, ceguei agora mesmo.Pela primeira vez, desde que aqui entrara, a mulher do médico sentiu-se como se estivesse por trás de um microscópio a observar o comportamento de uns seres que não podiam nem seques suspeitar de sua presença, e isto pareceu-lhe indigno, obsceno, Não tenho o direito de olhar se os outros não me podem olhar a mim, pensou.Não me acreditarás se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens da igreja estão com os olhos vendados.…talvez tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos.
Nesses termos, camada por camada, o autor tirou primeiro o supérfluo, depois o básico e por fim o necessário, até que restasse apenas a essência do que é existir. Terríveis e chocantes, as atitudes e os pensamentos de cada um dos cegos passam a parecer tão possíveis que em certo momento é provável que você, como eu, se veja pensando se o que torna o absurdo do ato tão crível é o contexto devastador ou se a cegueira por fim trouxe a loucura para fazer companhia ao ambiente deplorável.
O sargento disse ainda, Isto o melhor era deixá-los morrer à fome, morrendo o bicho acabava-se a peçonha.Vem andando ceguinho, vem andando, disse lá um soldado em tom falsamente amigável, o cego levantou-se, deu três passos, mas estacou outra vez, o tempo do verbo pareceu-lhe suspeito, vem andando não é vai andando, vem andando está a dizer-te que por aqui, por aqui mesmo, nesta direcção, chegarás aonde te estão a chamar, ao encontro da bala que substituirá em ti uma cegueira por outra.Quer saber a novidade, aquele coronel de quem lhe falei cegou, A ver agora que pensará ele da idéia que tinha, Já pensou, deu um tiro na cabeça, Coerente atitude, sim senhor, O exército está sempre pronto a dar o exemplo.
“Se não podemos viver como pessoas, ao menos tentemos não viver como animais” é algo que descreve bem o sentimento do livro. O tempo todo, numa sociedade que aos poucos entra em colapso, a história acompanha um grupo que não apenas tenta sobreviver, mas tenta manter um mínimo de dignidade. No entanto, quando o mundo ao redor enlouquece e a maldade vem à tona, onde guardar o amor próprio em segurança?
Um velho com uma venda preta num dos olhos veio da cerca. Ou também perdeu a bagagem, ou não a trouxe. Tinha sido o primeiro a tropeçar nos mortos, mas não gritou. Deixou-se ficar com eles, ao lado deles, à espera de que voltassem a paz e o silêncio.Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais, tantas vezes o repetiu, que o resto da camarata acabou por transformar em máxima, em sentença, em doutrina, em regra de vida, aquelas palavras, no fundo simples e elementares.Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho a responsabilidade, não amanhã, se estiver cega, Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam.Na rua, a mulher do médico lembrou-se do que tinha dito, devia dar mais atenção ao seu falar, mover-se como quem tem olhos, podia, Mas as palavras têm de ser de cego, pensou.
Apesar de falar muito sobre as dificuldades que a cegueira impõe, o livro fala também das liberdades que ela dá e dos jogos de poder que inicia. A história ensina que o ser humano pode, apesar de estar perdido, tirar proveito de outros tão perdidos quanto ele. Talvez o aspecto mais difícil da leitura tenha sido a violência sexual. Mesmo para as pessoas que podem ver, é difícil lidar com esse tema. A maneira como acontece quebra algo dentro da gente; é um tapa na cara tão forte que nem mesmo lágrimas poderiam expressar o sentimento. Tanto que eu não chorei; mas senti aquela rachadura em algum lugar da minha alma leitora.
Ao princípio, muito ao princípio, algumas organizações caritativas ainda ofereceram voluntários para irem tratar dos cegos, fazer-lhes as camas, limpar-lhes as retretes, lavar-lhes a roupa, preparar-lhes a comida, esses cuidados mínimos sem os quais a vida depressa se torna insuportável, até para os que vêem. Os pobres queridos cegavam imediatamente, mas ao menos ficava para a história a beleza do gesto.Havia portanto um cego normal entre os cegos delinqüentes, um cego como todos aqueles a quem dantes se dava o nome de cegos, evidentemente tinha sido apanhado na rede com os demais.De que me serve ver. Servira-lhe para saber do horror mais do que pudera imaginar alguma vez, servira-lhe para ter desejado estar cega, nada senão isso.A alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, o nome pouco importa, foi então que, surpreendentemente, se tivermos em conta que se trata de uma pessoa que não passou por estudos adiantados, a rapariga dos óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.Já que o queres, então seja, porque o homem que eu ainda sou gosta da mulher que tu és.
E, antes de terminar essa resenha, eu preciso dar atenção especial para a Mulher do Médico. Talvez o aspecto mais impactante da leitura tenha sido a simples existência dessa personagem; aquela que continuou vendo quando todos se tornaram cegos. Quando ninguém enxerga, ainda podemos nos enganar dizendo que está tudo bem, que somos todos iguais, que estamos com os mesmos problemas e que todos teremos que agir de maneira repreensível, insana ou desprezível. No entanto, se há alguém para presenciar toda essa loucura, se há alguém assistindo, tudo muda drasticamente de figura, e os cegos passam a ser animais sob os olhos de uma única mente sã, aos poucos enlouquecendo seu espectador.
Habituada já aos rumores contínuos da camarata, a mulher do médico estranhou o silêncio, um silêncio que parecia estar a ocupar o espaço de uma ausência, como se a humanidade, toda ela, tivesse desaparecido, deixando apenas uma luz acesa e um soldado a guardá-la, a ela e a um resto de homens e mulheres que a não podiam ver.Quando o médico e o velho da venda preta entraram na camarata com a comida, não viram, não podiam ver, sete mulheres nuas, a cega das insónias estendida na cama, limpa como nunca estivera em toda a sua vida, enquanto outra mulher lavava, uma por uma, as suas companheiras, e depois a si própria.Talvez eu seja a mais cega de todos, já matei, e tornarei a matar se for preciso, Antes disso morrerá de fome, a partir de hoje acabou-se a comida, nem que venham cá todas oferecer numa bandeja os três buracos com que nasceram, Por cada dia que estivermos sem comer por vossa culpa, morrerá um dos que aqui se encontram, basta que ponham o pé fora desta porta….E quando é necessário matar, perguntou-se a si mesma enquanto ia andando na direcção do átrio, e a si mesma respondeu, Quando já está morto o que ainda é vivo.
Da maneira como falei da história até agora, ela soa terrível, não é? Talvez seja porque fiz uso dessa palavra algumas vezes. Mas antes de terminar, quero deixar claro; o livro é muito mais do que tragédias.
“Ensaio Sobre a Cegueira” é assustador, mas também esclarece. É um retrato nítido do que seria a sociedade sem as camadas polidas e brilhantes de valores e normas sociais. Mostra para que servem nossas regras e leis, ao mesmo tempo em que expõe suas falhas. Esse é um livro de extremos; Ele aponta nossos defeitos, as maiores e mais horrendas, mas também mostra a capacidade humana de demonstrar gratidão e empatia.
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem.
É horrível e triste, mas também mostra a luz no fim do túnel. Como já disse, repito: totalmente necessário.
Nota: Cinco unidades invisíveis.
Resenha: Regina Umezaki
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